9 de setembro de 2010

Inimigos

A paisagem era dominada por um tom branquíssimo, branco como a neve. As rochas eram alvas, contrastando com o mar parcialmente azulado daquela região e com um monumental castelo erguido às margens de um pequeno rio congelado.

Ele estava preso na sua própria sala. O enorme castelo que erguera, fruto de mais trinta anos de trabalho sujo, tornou-se a cela da qual o homem ranzinzo e magro, protagonista deste texto, tornara-se refém. A escuridão, cortada por várias fagulhas de luz, que irradiavam das fechaduras e brechas das portas e janelas, dominava o ambiente, emitindo uma energia fantasmagórica naquele recinto. O silêncio total daquele castelo denunciava, em vão, os acontecimentos que estavam acontecendo no seu interior, despertando a curiosidade de minúsculos seres luminosos.


Maurício caminhava, às apalpadelas, tentando sensibilizar os sensores nervosos que incansavelmente trabalhavam no seu tato, enquanto vozes raivosas consumiam a pouca esperança que ainda lhe restava.

Três homens robustos, com os rostos envolvidos por uma fina camada de um tecido cinza, trajando longas vestes brancas, apareceram na sua sala, evidenciando a facilidade que tinham de passar por portões de ferro maciço e mais de uma dúzia de câmeras sem serem denunciados. Uma dupla de cachorros latia ferozmente às sombras do seu dono. O rico solitário, ao notar a inquietude dos seus animais perspicazes, percebeu imediatamente que estava à mercê de um trio de criminosos. Percepção esta que não passou despercebida aos olhos febris dos seus visitantes.

Os gritos foram abafados por um pano umedecido com éter, os cachorros silenciados com várias emissões de energia elétrica provenientes de um velho projétil imobilizador. Um braço musculoso envolveu habilidosamente um pescoço fino e frágil.

O ar esvaiu-se dos pulmões do anfitrião, uma centelha de luzes pipocaram na minúscula abertura ocular que ainda lhe restava. Antes da escuridão total, os sensores auditivos captaram uma mensagem enigmática: ''o prisioneiro está sempre à mercê do seu próprio medo''. Então tudo se anuviou.

O vento era gélido e cortante, dando-lhe uma sensação de inúmeras agulhas perfurando a sua carne dura.
A escuridão imperava aquele ambiente. Mauricio despertara, sentindo uma dor dilacerante na sua carne, o ar parecia pouco em seus os pulmões cansados, que trabalhavam avidamente, em uma posição, no mínimo, desconfortável.

Estava suspenso por uma corda amarrada em volta do seu corpo. O primeiro instinto veio da boca, mas os gritos perdiam-se pela escuridão. Tentou focalizar seus dedos próximos da face, quando se deu conta que já deveria estar com as pupilas hiperdilatadas, mas não enxergou nada.

O vento balançava o seu corpo para os dois lados, produzindo um efeito badalado no seu estômago.
A sensação de medo voltou, demonstrando a sua força e a sua magnitude. Tudo estava perdido.

- Alguém achou engraçado me sequestrar e pendurar nessa coisa aqui, que brincadeira mais infantil! – Esbravejou.

Uma voz suave soprava no seu ouvido, dizendo que tudo ali era mais real do que ele imaginava. O instinto de vida denunciava o perigo iminente.
Uivos e latidos tornaram-se audíveis e, à medida que os seus emissores se aproximavam, ficavam mais altos. ‘’Lobos da meia-noite! Estou perdido’’.

Tentou, em vão, se desvencilhar daquela arapuca, até perceber que algo parecido como uma cinta rodeva o seu corpo, emitindo barulhos metálicos. Tateou o seu corpo à procura de algum objeto metálico. Encontrou um revólver, uma faca e vários pedaços de alguma coisa esponjosa, que mais tarde revelaram-se como doces. Estavam acoplados em um bolso lateral daquela cinta. Instintivamente levou a mão ao revólver, tentando equilibrá-lo em sua pele gelada e escorregadia.

Barulhos de tiros ecoaram no ar, indo atuar em várias direções ocultas. Um uivo de dor ao longe, um gemido agudo cortou o ar, dando ar de vitória ao combatente. Então o silêncio voltou a imperar, tendo o vento como o seu auxiliar. Maurício pensava e falava, mas o medo engolia a sua esperança. Subitamente uma ideia lhe ocorreu:

- ‘’Vou comer esses doces, isso vai manter a energia necessária para o meu metabolismo. Vou ficar balançando aqui até o amanhecer. Algum empregado já sentiu a minha falta. Tudo o que eu tenho que fazer é ficar quietinho, mas... E SE EU CORTASSE A CORDA? Não, é muito arriscado. Pode ter mais lobos embrenhados por aí. Vou ficar aqui mesmo.

No dia seguinte, não se falava em outra coisa, vários televisores estampavam a imagem de um helicóptero, que filmava uma estação de esqui lotada de olhares incrédulos. Uma imagem aterrorizante destacava-se das outras: a menos de um metro do chão, um corpo congelado jazia suspenso por uma corda, rodeado por dois cachorros de olhos azuis mortos. O semblante do cadáver transmitia um olhar de medo e pavor, que eram nítidos em sua face cortada pelo vento.

Acima do corpo, uma faixa caprichosamente confeccionada chamava a atenção do público. Com uma escrita caprichada, lia-se a seguinte frase:

‘’Você pode ter muitos inimigos, mas o maior deles mora dentro de você’’.





P.S



Baseado em contos populares.

14 de maio de 2010

Mentiras Verdadeiras

Roberto estava, desde muito cedo, sentado em um canto de uma imensa ala hospitalar. Como previra, sua enfermidade e sequelas eram irremediáveis. Não se entristecera, pois já esperava pelo pior. Levantou-se e dirigiu-se à portaria. Um grito o tirou da sua caminhada. No início do corredor [ ou seria no final? ], uma mulher gritava desesperadamente. Suas palavras transpareciam dor, tristeza, angústia, desesperança...[ meus pontinhos! ]. Ele não soube dizer o porquê, mas os  seus ouvidos começou a guiá-lo até a sala daquela paciente. Escutou o médico dizer à desesperada que, por algum motivo, que a medicina ainda não conseguia explicar, o  córtex dela deixara de decifrar as imagens captadas pelos  olhos. Aproximou-se da porta e instintivamente abriu-a. Três pares de olhos se fixaram em sua direção, o quarto par estava à procura do vazio, perdido na escuridão de uma pessoa que, no dia anterior, apreciara a beleza de uma feroz manifestação da natureza, uma imensa correnteza. No primeiro instante, o médico pediu para que o intruso se retirasse, mas depois de uma conversa particular, não só deixou-o  ficar, como convencera a paciente a escutar o que ele tinha para dizer.
- Tudo bem? - era uma pergunta um tanto inoportuna e inconveniente, convenhamos.
- Eu tenho cara de que está tudo bem? - o intruso ficou em silêncio, por um instante, e sorridentemente disparou:
- Já vi caras piores.

Apesar daquela infeliz circunstância, os dois iniciaram um empolgante diálogo. Ele falava muito, era perceptível a qualquer um. Ela escutava, com a aparência revelando o seu estado emocional. Sem dizer uma única palavra que pudesse revelar as suas intenções, Roberto consolava Danuza - é, esqueci de dizer o nome dela no início deste texto - as palavras que saíam da sua boca pareciam meticulosamente ensaiadas.Chegavam aos ouvidos dela como uma melodia Vivaldiana, suave, no tom normal  e agradável.

Dois dias após, ela recebera a tão esperada alta. Sua única tia paterna, que ela não via há mais de quinze anos, estava ali para acompanhá-la. Roberto, também.
- Eu não sei como você pode ajudá-la, mas só o fato de você me livrar desse fardo, que é cuidar de uma sobrinha cega, já é o bastante para que você goze da minha inteira confiança - Ela não acreditava que ele poderia cuidar bem dela, mas estava alheia às intenções dele. Se livrar da sobrinha era o objetivo.

Danuza estava radiante, três meses após o misterioso incidente, que a fez dormir e acordar em um sono profundo, negro, escuro...a vida começou a lhe mostrar as coisas belas que uma pessoa provida de visão não poderia ver. Roberto tinha se tornado  um acompanhante constante. Foi com ele que ela aprendeu a cozinhar no escuro, andar no escuro, ver no escuro e, acima de tudo, sentir no escuro. Semanas antes, tinha visitado uma amostra de escultores, suas mãos enxergavam cada curvatura daquelas belas obras. No outro dia, foi ao cinema, seus ouvidos lhe mostravam cada cena que era exibida, cada choro, sorriso, momentos de tensão eram captados pela sua audição. E no escuro do cinema, sua mão procurou por outra mão, seu nariz roçava o nariz do agradável intruso, seus olhos castanhos se fixaram nos olhos azuís dele - na verdade, ele tinha mentido sobre a cor dos olhos - e seus lábios se interagiam perfeitamente.

Roberto adorava rosas, tinha na sua casa um imenso roseiral. Com muito esforço, convencera Danuza a ir visitá-lo.
- São lindas! Perfumadas, delicadas, mas os espinhos. Ah, Roberto! A natureza, na sua perfeita imperfeição, fez brotar espinhos no meio das rosas. É triste, injusto, desigual... Eu me vejo, neste instante, como essa rosa, onde as circunstâncias são os espinhos e eu e você um broto de rosa a desabrochar.
- Querida, isso é uma questão de pontos de vista. Por que você não procura pensar que, até no meio dos espinhos, a natureza nos reserva uma bela rosa? - Ela riu. Sabia que sempre ouviria palavras de conforto daquela agradável companhia.

Dois anos depois, agora casados perante os seus consentimentos, o casal assistia a um programa de tv, quando foi surpreendido por uma inovadora notícia. Danuza não podia ver, mas teve certeza de que aquela voz, que anunciava eloquentemente um novo tratamento para curar a cegueria, pertencia ao seu médico. Não teve dúvidas, no dia seguinte,  iria  àquela clínica, onde os seus sonhos de se tornar uma fotógrafa fora assassinado. Como sempre, teve o apoio do seu marido, que tinha uma expressão de preocupação, que não passou despercebido por ela.
- Eu sei que você não quer que eu fique magoada, sei que não quer me ver frustada, mas eu tenho que tentar, querido. Preciso tentar.

Ela estava  vestindo uma roupa branca, deitada de bruços, em uma maca no canto de um grande quarto. Em poucos minutos, o médico anunciaria se a experiência tinha surtido resultado positivo. Roberto não estava lá.
Alguém levou a mão ao seu corpo, que virara pra frente do médico. Aos poucos, o tampão nos seus olhos foi sendo retirado. Ardeu. Seus olhos ardiam como fogo, mas a figura de um anjo, portando um estetoscópio era nítida. O córtex decifrara cada centímetro que os seus olhos podiam alcançar. As palavras fugiram da sua boca, o sentimento de reconquista era infinitamente grande.


Danuza procurava Roberto, cada minuto  dessa procura parecia eterno. Uma enfermeira a acompanhava. Não encontrava. Perguntava para si mesmo onde estaria o homem da sua vida, o homem que a fez enxegar no escuro. Não demorou muito para que seus ouvidos revelassem o paradeiro do sumido. Estava conversando com o balconista da lanchonete onde os médicos faziam suas refeições, mas algo estava errado. A voz era inconfundível, mas não podia ser. O homem que dialogava com o balconista exibia um olhar vago, perdido e distante.

Mil perguntas pipocaram na mente de Danuza, sem que ele pudesse vê-la, ficou perguntando a si mesmo como aquele homem, desprovido de visão, pode lhe ensinar  e mostrar tantas coisas no escuro. Claro, só uma pessoa experiente poderia exibir tanta confiança em si, pensou. Mas nada disso fazia diferença, ela o amava, e isso, somente isso, era o que importava naquele momento. Virou-se para a enfermeira e falou:
- Ele já sabe? Sabe que estou curada?
- Ainda não, quando tentamos, ele disse que queria ouvir da sua boca.
- Pois bem, chame-o ao meu quarto, mas não lhe diga uma só palavra.

-Então, amor, como se sente?
- Roberto, você sempre preocupado comigo. Acho que no fundo você sabia que nunca daria certo. Nunca verei os seus olhos verdes, nunca.
Ele a tomou em seus braços, beijou-a, consolou-a e um riso disfarçado surgiu no cantinho da sua boca.
Conversando consigo mesmo, calado, no íntimo cerebral, disse: mas eu tinha falado que os meus olhos eram azuis. E riu.

continua...

26 de abril de 2010

Bandidos Legais

A Comunidade  das Orquídeas, mas conhecida como Pelo da Cobra, difere-se de todas as outras, apesar de também ser uma favela. Lá não existe esgoto a céu aberto, todas as casas possuem água encanada e rede elétrica dentro dos padrões aceitáveis. Todos pagam as suas contas de água, luz e telefone. Não há gatos para atrapalhar a diversão das crianças, que soltam pipas alegremente.

Lá, todos os moradores são honestos. Ladrões? Sequestradores? Assassinos? Não, não... Nessa comunidade todos os bandidos são legais.
Os becos dessa comunidade não são ocupados por adolescentes trabalhadores. Armas não são benvindas lá. Drogas? Só os bandidos legais possuem o direito a elas, e também são eles que determinam quem pode isso e quem pode aquilo.

Na delegacia dessa comunidade, o delegado dorme a maior parte do tempo, mesmo com dez camuflados assassinatos diários.
Não há moradores denunciando os bandidos legais, na verdade eles se interagem harmoniosamente.

Na maior escola desse bairro, o índice de presença é altíssimo. Um aluno não falta às aulas há mais de três meses. Nos intervalos, não sê jovens comendo uns aos outros, tampouco adolescentes exercitando o olfato. O que se vê são grupos discutindo temas importantes. Um destes, no meio do pátio, está discutindo sobre a posição do Brasil frente ao programa de expansão nuclear da Coréia do Norte. Outro, ao lado deste, está apoiando Barack Obama no programa de desarmamento do Irã. Noutro cantinho, um aluno, com olhos roxos excessivamente grandes, berra as suas criticas à política externa dos Estados Unidos. Outro critica eloquentemente o Programa de Aceleração do Crescimento, implantando pelo governo Lula.
Na diretoria, um bandido legal explica à diretora sobre como aproveitar e trabalhar o potencial intelecto dos alunos. Na quadra de esportes, outro bandido legal dá aulas de etiqueta para um grupo de esqueitistas.  Nessa mesma quadra, outro bandido explica para os fanáticos da educação física, sobre como ganhar massa corpórea sem ajuda dos anabolizantes.

O maior supermercado dessa região funciona vinte e quatro horas. Os lucros, no último trimestre, aumentaram consideravelmente, graças ao aumento do preço dos produtos ali comercializados, mas nenhum cliente reclamou.
Esse supermercado não sofre ação de vândalos há mais de três meses. Nenhum roubo. Assalto. Tiroteio.
O banco dessa comunidade também conseguiu essa proeza.
A linha de ônibus que opera nessa região também colhe os frutos da nova administração.
Os taxistas, farmacêuticos, perfumistas em geral também estão satisfeitos com a nova administração.

Na praça, tudo caminha sem nenhuma alteração. Uma senhora rola na grama com seu filho e seu pitbul manso. Um bandido legal vigia a praça, com armas invisíveis.
As ruas também são fortemente vigiadas. Não acontece um acidente há exatos três meses.

Certo dia, um benfeitor alemão foi visitar essa comunidade. Ao chegar, foi amparado por um bandido legal, que vigiava disfarçadamente o primeiro beco. O vigia ordenou, através de um celular, que algum poliglota descesse para cuidar do alemão, que viera em busca do segredo da harmonia daquele povo. Queria conhecer o meio social, político e econômico dos moradores.
Ficou feliz ao notar que jovens não ocupavam os becos.Também notou a perfeita rede elétrica, os encanamentos...Uma moradora, chamada pelo guia, sorriu para o gringo, que não soube explicar a si mesmo o porquê daquele sorriso tão vazio.
Depois de andar por quase todo aglomerado, perguntou pelo coordenator ou administracion daquele bairro. Em resposta, ouviu que ele teria o maior prazer em recebê-lo.
O alemão ficou ainda mais feliz. Tinha encontrado a tão sonhada Vila Ideal.

Chegando à casa do poderoso chefão, o gringo ficou boquiaberto. O humilde triplex era delimitado por cinco inacreditáveis metros de concreto. O quintal era maior que uma quadra de esporte. Ficou pensativo ao perceber um cheiro desagradável no ar, mas ficou mais pensativo ainda ao notar a quantidade de carros sucateados, pneus, monitores, rádios e outros artigos que se aglomeravam em um canto do pequeno quintal.

Essas anormalidades deixaram-no aflito. Ao atravessar o quintal, ficou pensando no que estaria atrás daquela grande porta de mogno, que dava acesso ao interior da casa.
Espantado, assim ficou o gringo depois de atravessar o portal. Não tinha bandidos portando armas russas de última geração.
Uma turma de homens bêbados sorriam alegremente para ele. O chefe ensaiou um Uelcame tup may  umble rome.
Tudo estava dando muito certo até o ponto em que o visitante notou, no canto atrás do chefe, várias mesas abarrotadas de telefones celulares, que exibiam etiquetas coladas na parte de trás, com nomes, como: farmácia, banco, supermercado, perfumista, jardim, delegacia, escola entre outros.

Notou o chefe piscar para o seu guia.
Tudo ficou claro. Nesse momento, ouviu barulho de pés descendo escadas. O guia, encarregado de cuidar dele, piscou para o chefe com um semblante fora do comum.

Uma mão forte e pesada veio de encontro a sua nuca. O benfeitor nada pode fazer, além de levar consigo, para o túmulo, o segredo daquela comunidade: os bandidos uniformizados que desceram nas escadas eram, de fato, bandidos legalmente legais.

21 de abril de 2010

Olhos de Vidro

Eduardo estava sentado na grama à beira de uma lagoa. O ar parecia ser palpável, o canto das andorinhas lembrava-lhe os assobios dos seus avós, os peixes pareciam estar atuando em uma perfeita peça teatral, os casais ao  seu redor  sentiam os corpos uns dos outros, em amassos arrepiantes, mas ele estava só. Sempe só. Não tinha pai, não tinha mãe, primos, tios, irmãos e muito menos namorada.
Eduardo  tinha vinte e sete anos, pele morena, olhos negros como jaboticabas, boca extremamente carnuda, cabelos à rastafari, magro e era vendedor de jornal.
A vida de Eduardo era vista com muita pena pelos seus companheiros de trabalho, apesar dele nunca ter demonstrado algum momento de fraqueza. Pelo contrário, nos momentos de dificuldade, sempre manteve o alto astral. Nunca derramara uma lágrima por causa de qualquer problema.
Ultimamente, uma peça - como ele gostava de dizer - estava faltando no quebracabeça da sua vida: uma mulher. Queria se apaixonar perdidamente, ter filhos, amar...mas nenhuma  leitora, que parava na sua banca, chamava-lhe a atenção. Isso tinha que mudar.

Na volta do trabalho, em um dia qualquer de janeiro, decidiu se arrumar e sair à ''caça''. Parou em frente a uma vitrine de uma loja de roupas, a fim de comprar alguma peça que lhe caísse bem. Nenhuma lhe interessou. Entrou em várias outras lojas, mas acabou voltando para a primeira. Decidiu entrar e observar as peças.
Eduardo, definitivamente não era sinônimo de vaidade. Para ele, o importante era estar vestido. Depois de um certo tempo, vasculhando a loja, sentiu vontade de ir ao banheiro e, ao perguntar onde este ficava pra uma das vendedoras que o observava timidamente, irritou-se muito ao saber que teria que subir quatro andares para alcançar o seu objetivo.

O banheiro estava lá, mas ele não conseguia entrar, ele tentava parar de olhar, mas os seus olhos desobedeciam a sua vontade, queria falar alguma coisa, gritar, chorar, mas tudo isso parecera longe do seu alcance. Ela estava lá, parada, estática, fria, olhar arrebatador... A peça que faltava na sua vida aparecera como passe de mágica. Eduardo se sentiu estranho, afinal, achou que esse tipo de choque era incomum aos outros homens. Aproximou-se dela, sentiu o cheiro de Portinari que emanava das suas lindas vestes, fitou os seus olhos nos olhos dela, que pareciam de vidro. Também não resistiu aos seus lindos cachos castanhos, sedosos e brilhantes. A admirada nada disse, apenas o fitou friamente.
- Posso ajudá-lo, Sr?
A voz de outra vendedora o fez sair daquele lapso. Ele não disse nada, apenas riu.


Eduardo estava radiante, a peça era a '' coisa '' mais perfeita que poderia acontecer na sua vida. Tinha que trazer ela para sua casa, para a sua vida.
Em pouco tempo, o vendedor se tornou um dos principais fregueses de uma atendente ruiva, que adquiria um tom levemente suspeito, ao vender aquele monte de xuxas para ele -  o que é facilmente aceitável, uma vez que ele passava lá todos dias, com uma desculpa que estava dando xuxas de cabelo para suas freguesas.

A peça de Eduardo  estava sempre à sua espera, linda, cheirosa, bem vestida, estática e ...
Ele só não sabia a maneira correta de '' chegar'', isto é, chegar sem fazer alarde, sem causar constrangimento, o que ele sabia que era uma tarefa nada fácil.

Tempos depois, Eduardo tinha  decidido colocar o seu plano em ação, pois o seu coração já não suportava mais, queria estar com ela, abraçá-la, acariciá-la, sentir seu perfume, sussurrar palavras calientes no seus ouvidos. Depois de muita economia, presumiiu que já tinha a quantia certa para tirá-la de lá.
O sol estava descendo, e a loja já estava fechando, mas ele conseguiu chegar lá. A atendente ruiva bufou.
Dirigiu-se ao quarto andar e, para o seu espanto, ela já não estava mais lá, a moça dos olhos de vidro sumira assim como aparecera. Ele procurou, inutilmente, em todos os departamentos.
- O que vocês fizeram com ela? Onde ela está? Eu quero vê-la! Por favor! - choramingava desesperadamente.

Eduardo, apesar de perceber que havia várias peças como aquela, não se conformava. Meteu a cara na bebida e nunca mais entrou em outra loja. Nunca mais se apaixonaria por outra moça de olhos de vidro.

Tinha tomado a decisão correta, pois, logo que fora remanejada daquela loja, o manequim dos olhos de vidro tinha se resumido em um monte de plásticos semitriturados de uma inacabada usina de reciclagem.

22 de março de 2010

A Cabana

O sol estava escaldante, Mariana não tinha mais aquela certeza inicial de que conseguiria atravessar o deserto. Desde que foi deixada pelos nômades, na noite anterior,  à deriva do vento noturno imperiante no deserto , tinha enfrentado vários inimigos, como redemoinhos de areia, queimaduras na pele, delírios, miragens e até uma mordida de uma cobra que, impiedosamente, cravou-lhe as presas na sua perna esquerda. Devido a esse momento, a solitária concluiu que algum hormônio do seu corpo bloqueara uma  ação mais intensiva do veneno da cobra, pois a perna tinha perdido a sensibilidade. Era como se ela sentisse a perna quando mais precisava dela e não a sentisse quando estava andando, pois criara a ilusão que a dormência tinha diminuído o peso do seu corpo. Não sabia como estava conseguindo andar.
Estava em uma caravana proveniente do interior da Arábia Saudita, que estava rumando para a capital. Tudo estava indo muito bem, até ela acordar e perceber que fora deixada para trás, com uma mísera lona rasgada e uma singela garrafa d'água.
Mariana estava peregrinando há mais de duas semanas, isso representava quase 90% do percurso programado. Depois de alguns cálculos mentais, concluiu que não estava longe do seu destino. Decidiu, como se tivesse outra alternativa, em continuar a caminhada. Primeiro, pensou em seguir as pegadas dos camelos, mas, depois de algumas tempestades de areia, percebeu que isso era impossível.
Seria guiada pelo sol, pois crescera ouvindo  que ele descia na velha capital árabe.
Horas depois, teve a impresão de que não tinha nem saído no lugar.

Mariana suava muito, não poderia continuar a perder tanta água. Quando deu vontade de urinar, improvisou uma posição, em que o líquido voava diretamente para a sua boca - Sim, isso é nojento - .
Sua perna esquerda começou a protestar, sua visão começou a dar sinais de falência, sua pele gritava em silêncio e sua respiração parecia não alcançar o ar externo.
Desmaiou.
Horas mais tarde, acordou em uma cabana de palha próximo a um rio. Não sabia onde estava. Tudo estava confuso. Levantou-se e avaliou o seu redor. O odor do ambiente meslcava entre banana e carne putrificada.
Um senhor muito simpático aproximou-se e apontou para a perna dela. Mariana não tinha percebido, mas sua perna estava coberta por um visgo que, milagrosamente, lhe devolvera a sensibilidade da perna. O local da picada da cobra também estava melhor. Também percebera que toda a sua pele estava coberta por uma espécie de argila vermelho-laranjada.

O senhor não falava o idioma dela, mas era perito em mímica. O velho a ofereceu comida, água e doces. Com um simples gesto, Mariana entendeu que ele estava supreso com a sua magreza.

Durante vários dias,  ficou aos cuidados do velho, que era amável e atencioso, além de sempre  se mostrar preocupado com a perna dela , pois o visgo era trocado diariamente. Sua pele também recebeu atenção, embora Mariana tentava convencê-lo de que ele não precisava mais se preocupar com ela, pois tivera impressão de que o velho estava tentando clarear a sua pele além do tom nomal.

Numa bela noite, Mariana decidiu que partiria no dia seguinte. O velho ficou triste. Cabisbaixo.
Ela o acariciou e tentou demonstrar agradecimento. À primeira vista, obteve sucesso, tanto  que o senhor acendera um imensa fogueira, que tinha deixado a morena irradiante. Os dois beberam muito, na verdade, ela bebeu mais que ele. Também tinha muita banana sendo assada.

Então, quando Mariana levantou para pegar mais bananas, sentiu algo forte e pesado bater na sua cabeça, rodopiou a tempo de ver o velho com uma imensa pedra ensaguentada na mão. Riu e sucumbiu ao chão.
Pouco tempo depois, o velho estava se deliciando com um perna assada e com alguns pedaços de torresmos negros.

- Eu sabia que a bebida daria um toque especial nessa comida.




P.S:

-Imagem obtida no site acre-pousadas.com.br
-Texto baseado no livro '' Atrás do Paraíso'', de Ivan Jaf.

10 de março de 2010

Fama

Priscila sempre foi taxada como uma jovem muito sonhadora. Aos desesseis anos, conseguira a permissão da sua mãe para o que seria o seu futuro promissor: uma carreira de modelo em Paris. Sua mãe, embora receosa, depois de conversar particularmente com o agente da filha, deu-lhe a permissão para viajar.
Priscila tinha olhos castanhos esverdeados, que pareciam penetrar na alma de quem os fitassem. Seus cabelos eram de um tom negro, tendendo para o vermelho. Sua boca era apenas a continuidade do seu estreito nariz. Sua pele morena brilhava como um chocolate amargo. O seu corpo era escultural, embora o seu tamanho costumava-lhe render penosos apelidos, como pau-de-sebo e girava ambulante.

A jovem sonhadora estava hospedada em um luxuoso hotel , com vista para a Torre Eiffel.
Nada estragaria aquele dia. Deixaria de ser uma menina suburbana, para se tornar umas das maiores modelos da história. Bem, esse era o sonho dela. Almejava uma fama inatingível - e ela iria conseguir.

Era um noite, de um úmido sábado primaveril, Priscila aguardava a chegada do seu empresário, provavelmente acompanhado de pessoas ligadas à mídia da beleza, pois, horas antes, tinha recebido um pacote, contendo um fino e micro vestido preto da Channel, que a fez se sentir na pele da Cindy Crawford, e um belo frasco de perfume da Dolce & Gabanna, que contribuiu ainda mais para elucidar o cheiro de sedução que irradiava do seu corpo.

A ansiedade de minutos antes foi substituída por uma receosa e desagradável sensação de perigo, pois a chegada do seu empresário não foi nada do que ela tinha imaginado. Ele  tinha chegado, acompanhado de um homem velho, que ela não soube discernir se era russo ou árabe. Os dois falavam em tom nada animador, na verdade, o velho emitia um sons que ela podia jurar que já tinha ouvido. O estranho gesticulava mais do que falava.
Alguns minutos depois, seu empresário saiu, deixando-a  entregue à própria sorte, sozinha e com  o estranho velho no seu encalce.
Tinha caído em si. Lembrou-se dos conselhos da mãe. Não estava ali para ser modelo, não estava ali para uma sessão de fotos, não estava ali para uma entrevista.
Chorou...

O velho senhor aproximou-se dela, passou-lhe a mão nos lábios, dando umas leves palmadinhas na bochecha, depois, com um olhar, que ela julgou ser de descoberta, de cobiça, de luxúria, afastou-se da bela moça, e  sentou-se em uma  confortável poltrona à sua frente.
Priscila não dissera uma palavra. Apenas obedeceu aos seus extintos, afinal, o que poderia fazer?

...

Matar o velho, foi essa conclusão que ela chegara ao perceber que, apesar das suas fraquezas, aquele senhor, se fosse alvo de um golpe certeiro, jamais sairia vivo dali, pois, além de demonstrar uma aparência cancerígena, ele era manco.
Com algumas mímicas de improviso, ofereceu chá  frio ao estranho. Um gesto com a cabeça sinalizou um sim.
Pouco tempo depois, na verdade horas depois, Priscila decidiu que tinha que agir, não aguentaria mais ficar naquele sofá, olhando para o que seria o seu ''futuro promissor''. Não podia esperar mais.
Dirigiu-se à copa, procurou alguma arma pontiaguda, mas tudo que encontrou foi um pedaço de ferro, provavelmente esquecido por algum pedreiro, embaixo do tapete.
O senhor continuava calado.
Esperaria o momento certo. Ficaria atras da porta, que dava acesso à  copa, até o senhor sentir a  sua falta.
Não demorou. Impetuosamente, como quem parecia que tinha tomado uma importante decisão, o estranho levantou-se bruscamente e foi à procura da sonhadora.

Um golpe. Um gemido. Um pedido silencioso de misericórdia, mas a saúde do velho não era das melhores. O sangue inundou o tapete. Fixou o que seria o seu último olhar na bela moça, e foi-se.

Priscila tinha que fugir, mas não tinha dinheiro. Dirigiu-se até o velho, e lhe tomou a carteira. Tinha muito dinheiro ali, mas não foi isso que chamou a sua atenção. Uma foto velha, preta e branca, revelou a procedência daquele velho. Na foto, uma mulher esguia, que a jovem a reconheceu no primeiro olhar: a sua mãe, que estava de mão dadas com um belo rapaz, que Priscila tinha certeza que se tratava daquele velho senhor. Uma menina sorria alegremente nos braços do...pai.
Não poderia ser. Procurou o documento do velho, mas ele não a alviou. Procurou o seu documento, e então tudo ficou mais claro.
Tinha sonhado a vida inteira em reencontrar o pai e, quando teve o sonho realizado, o  matou sem chances dele gesticular, pois sua mãe já tinha falado da deficiência do seu pai: ele era surdo-mudo.
Já era tarde...

No outro dia , tudo o que ela conseguia lembrar era de um corpo ensanguentado caído no chão.
Via, sem saber o motivo, sua foto  na tv do pátio de um centro de recuperação psiquiátrica, sendo largamente exposta,  frente a uma matéria que dizia: Executivo da Channel morto pela própria filha.



P.S
Imagem retirada do site UOL.

1 de março de 2010

Domingo, no sofá, assistindo TV? Nem pensar.


     Eu não tenho costume de usar este blog para desabafar ou relatar algum tipo de experiência própria, mas vou deixar essa regrinha de lado durante alguns minutos, apenas para dizer o quanto me sinto deslocado, quando o assunto é programas de tv. Confesso que sou adepto dos real times¹ e sempre acompanho o ibope² das emissoras de tv aberta do Brasil. Também acompanho a dança das cadeiras dos atores, apresentadores e jornalistas. Sem mais delongas, o motivo de eu estar digitando essa mensagem é a falta de programação, digamos, adequada e válida para um final de semana.
A Globo, uma das maiores emissoras de tv do mundo, diz ter o ''Q de qualidade'', mas exibe algum filme do Eddie Murphy  trocentas vezes por ano. Ela teima em deixar no ar o cara mais sem graça da televisão brasileira, embora, por muitos, seja visto como o melhor humorista do país, pai das criancinhas  desamparadas, embaixador da Unicef e blá blá blá. Claro que, por motivos óbvios, não citarei o nome dele aqui. Outra coisa que me deixa um tanto nervoso, é o fato da poderosa Globo ter aderido o molde assistencialista das outras emisoras (quero deixar claro que ajudar é sempre bom, e credito quem faz isso, desde que não haja segundas e terceiras  intenções por trás desses favorzinhos). Desde o momento em que eu entendi alguma coisa sobre eleições, as minhas quizilas com a família, dona da Q de qualidade, só faz aumentar.
     E a TV MAIS  FELIZ DO BRASIL? Sim, é pra rir. A emissora perdeu o equivalente a oito redetv's em cinco anos³. Eu não consigo entender algumas atitudes de um dos maiores propagandistas do Brasil. Exibir pestinhas, cutucando o nervosismo dos pais, em plena noite de sábado é o fim da meada. Aquele Roda a Roda Jequiti é de uma estupidez sem tamanho. E o Show da Gente? O Netinho, dias desses, diz se sentir um sociólogo de atitude, pois não enxerga a sociedade com olhar acadêmico, e sim com o coração ( vergonha alheia).  E a Maisa? Ela cansa. Cozinharam o franguinho com tanto êxtase, que o caldo se esvaiu . E o Domingo Legal? Consegue realizar o sonho de tanta gente, mas não dá conta nem do seu. Eliana? Eu até gosto quando passa alguma curiosidade sobre os animais, mas o resto, é a cara da Eliana mesmo. Adooooooro! E lá vem ele de novo, às dezenove horas, de um domingo que era para ser animador:Roda a Roda Jequiti. Céus! O Programa Sílvio Santos é salvo pela simpatia e carisma do apresentador, mas os seus convidados... O próximo é o campeão da falta do bom senso: Pegadinhas Picantes (sim, eu já assisti), que de picante não tem nada. Se desse para pelos menos brigar de cinco ( entenda como quiser).
     A TV DE PRIMEIRA! A CAMINHO eterno da LIDERANÇA. Que a Rede Record se mostrou uma organização visionária, ninguém pode negar. É a atual vice-lider de audiência. Comprou alguns atores globais, adquiriu direitos de exibições de importantes acontecimentos mundiais, mas isso não a faz um tv de primeira. Eu vou tentar ser o menos parcial possível, pois antipatia que tenho pela Record é enorme. Aquele ''Você acredita em Deus'', ''Então Você Acredita em Milagres'' é quase um tenha fé em Deus, mas prove, doando o seu carro, sua casa e seu cheque para Jesus. Eu não sabia que Jesus tinha carteira de motorista, que Ele pagava IPTU ou que também era alvo das tributações bancárias. Se Ele pagasse IPTU, teria muitos motivos para se preocupar. Eu ainda espero ver o '' VISA, Aceito Aqui e Aonde Você For'' estampado na portaria da IURD. Gente, como uma emissora, que se diz a caminho da liderança, exibe PICAPAU inúmeras vezes por dia? Aquele Tudo é Possível faz jus ao nome, pois ele ainda consegue ser tão ridículo quanto um certa universitária expulsa, que, dias desses, estava no ''O Pior do Brasil'' à procura de um dote.
O Progama do Gugu é o retrato da  ganância da rede Record. Contratado por oito anos, por um quantia equivalente a trezentos milhões, Gugu faz a Record perder o bom índice de audiência, herdado do Domingo Espetacular em questões de segundos. Também pudera. Quem está interessado em comemorar a vitória de um cão corinthiano em plena noite de domingo? Quem está interessado em assistir ''Top 10 da Internet'', quando o número e internautas do Brasil é um dos mais cresce no mundo? Quem estar interessado em ''Sonhar mais um Sonho'', quando não estamos dando conta nem dos nossos?
     É triste ver que a programação dos canais de tv aberta do Brasil não tem nada de educativo, mas, se tivesse, poucos assistiriam. Não menciono a Band, RedeTV e Cia por que acho que elas são extensões destas mencionadas neste texto.
Eu, que sou um telespectador assíduo, estou concluindo que já está mais do que na hora de mudar os meus hábitos. A partir de hoje, tornar-me-ei um leitor fanático, tão fanático, que não terei mais tempo para perder, com as babaquices e asneiras que se saem das bocas das tais celebridades deste país.





PS: Sim, a montagem está horrível, também pudera. Eu a fiz no horário da aula de Ciências Sociais Aplicadas. Sorry.




¹ audiencia dos canais abertos, em grupo seleto de telespectadores, em tempo real.
² neste caso, ibope quer dizer audiência dos canais, embora a palavra em si remete  ao Insituto Ibope, empresa que atua no ramo de pesquisas.
³ informação retirada do PNT, Painel Nacional de Televisão.


27 de fevereiro de 2010

Portas

O corredor estava  escuro. Augusto caminhava em direção à única porta que se podia ver. Uma luz no fim do túnel, pensou. Ele andava, andava...mas teve a impressão de que quanto mais andava mais a porta se distanciava. Depois de um certo tempo, como num passe de mágica, um porta surgiu à sua esquerda. Tentou olhar pelo buraco na fechadura, mas percebeu que também estava escuro. Não hesitou, levou a mão à maçaneta e a girou. A porta abriu, ecoando um ruído ensurdecedor.

- Eu entro nessa ou naquela? - perguntou para si mesmo.
Não demorou para ele chegar à conclusão que, talvez, a outra porta não era para ser alcançada, mas estava lá apenas para comprovar que não se deve caminhar para o desconhecido. Também não demorou para ele perceber que desconhecia o interior do que havia atrás da única porta que abrira ao seu lado, mas concluiu que não tinha nada a perder. Entrou. No primeiro instante, ficou confuso.
- Minha casa?!- Ficou feliz, imensamente feliz. Percorreu o interior da sua casa como se fosse a primeira vez. Sua única irmã e seus dois irmãos estavam almoçando, diante de uma mesa grande e farta. Aproximou-se da mesa e puxou uma cadeira que, em matéria de qualidade e cor, destoava de todo o resto. Não sentiu fome e, pelo que pode perceber, não era o único, os seus irmãos brincavam com a comida, mas nenhum deles estava alimentando de fato. Estão tristes, pensou.
- Por que estão tão tristes? O que aconteceu? - perguntou, mas ninguém lhe dava ouvidos. Por um momento, seu irmão mais velho olhou em sua direção, com uma expressão triste e vaga, mas não disse uma única palavra. Ficou confuso. Seja o que for que tivesse acontecido, ele tinha que saber. Levantou e seguiu em direção à escada, que dava acesso ao segundo andar.
Portas, muitas portas. Caminhou em direção a porta do seu quarto. Ao entrar, viu sua filha, de cinco anos, deitada em sua cama, ela estava triste, soluçava, choramingava o nome do pai.
Correu e a abraçou, acariciou os seus longos cabelos , e, embora não soubesse o motivo, consolou-a. Ela adormeceu. Ele saiu do quarto. Decidiu que tinha saber, e rápido, pois tudo estava muito confuso. Antes de alcançar a escada, um enorme retrato, pintado em preto e branco, olhava em sua direção. Aproximou-se e então tudo ficou claro. Ao ler o rodapé da foto dos seus pais, percebeu o motivo da tristeza de todos.
- Cinco anos! Parece que vocês estavam comigo ontem, me acariciando, me dando conselhos, brigando comigo, me amando, e agora já faz cinco anos que vocês partiram - falou, com a voz triste.
Foi de encontro ao seu irmãos. Decidiu que tinha que encorajá-los. Ao chegar na cozinha, olhou para o rosto de todos, respirou e começou a discursar.
Alguns minutos depois, percebeu que suas palavras não surtiram o menor efeito. Eu tentei...
Resolveu fazer algo que tinha certeza que todos já tinham feito: visitar o túmulo dos pais.
Augusto quis comprar algumas flores, mas concluiu que, ou ele tinha esquecido o dinheiro em casa, ou perdera, durante o longo trajeto no corredor escuro, pois o bolso esquerdo estava rasgado.
- Minha presença é mais significativa que meras flores.

O cemitério estava deserto, o único som que se podia escutar era o alegre assobio do coveiro, que o fazia espontaneamente, enquanto cavava mais um túmulo.
Ao chegar no túmulo dos pais, se espantou com a quantidade de flores e coroas que estavam depositados sobre a lápide. Que exagero!
- Bem pai, mãe, eu não trouxe flores, mas sim o meu eterno amor e agradecimento por tudo que vocês fizeram por mim. A Angélica tem os cabelos iguais aos seus, mãe, mas os olhos e o nariz dela são todos seus, pai. Vocês fazem tanta falta. Como eu queria ter a certeza de que vocês estão me escutando.
- Nós sempre escutamos você, filho - era a voz de duas pessoas, em coro.
Augusto piscou, mas a imagem dos seus pais não despareceu como previra.
- Isso é um sonho?
- Você pode chamar do que quiser: sonho, loucura, imaginação fértil...o fato é que sempre escutamos você, os seus irmãos e a nossa linda netinha - disse a mãe, suavemente.
Tudo ficou mais confuso ainda. Augusto, por um momento, pensou estar tendo uma alucinação. Respirou fundo e olhou para o túmulo coberto de flores.
- Posso?
- Claro que sim, ele é todo seu.
Afastou algumas flores da margem do túmulo e sentou.
Ninguém falou mais nada. Augusto contentava em ficar apenas admirando a imagem dos pais
- Parece tão real...
E despertou. Tinha adormecido sobre o túmulo dos pais.
- Que sonho lindo! Tenho que contar aos meus irmãos. Levantou-se e, ao perceber que as flores estavam no exato lugar que colocara no seu ''sonho'', estranhou. Decidiu arrumá-las.
De tudo que tinha acontecido neste dia, nada lhe chamou mais atenção do que as letras de pedras encrustadas na lápide. Não tinha percebido, pois as flores ocupavam quase toda superfície. Ao ler o que estava escrito, tudo ficou claro. Lembrou-se do corredor escuro, da tristeza dos irmãos, do choro da filha, da falta de atenção que não estavam lhe dando e do bolso esquerdo rasgado. Não era um rasgo comum. Era uma marca.
Ao fixar os olhos seguidamente nas letrinhas, leu o próprio nome, indicando que ele tinha morrido no dia anterior. Foi aí que tudo mudou. Estava de volta ao corredor escuro, dessa vez, não estava sozinho: os seus pais o acompanhava. Daí em diante, os três rumaram em direção à unica porta que se podia ver. Augusto caminhava, caminhava e caminhava, sem ter a certeza de que um dia alcançaria o desconhecido que havia por detrás daquela porta.



Foto: Google Imagens.

23 de fevereiro de 2010

Inclusão Digital

   





    Se tinha um casal, que ninguém sequer imaginava que um dia foi um casal apaixonado, Esdras e Agripina seria um ótimo exemplo. As brigas do casal eram tão constantes, que vizinhos, parentes e amigos nem intrometiam mais. ''Você merece coisa melhor, mulher, sai dessa'', ou, ''não sei como você aguenta aquela dali'' eram as únicas frases que ambos ouviam.
    A madrinha do casal, uma senhora de oitenta anos, era a única pessoa que ainda acreditava no amor dos dois. Ela vivia dizendo: Esdras nunca deixou de amá-la, apenas perdeu o modo de demonstrar. Para ele, dizia: o ciúme excessivo de Agripina significa apenas que ela ainda o ama, Esdras. Este tivera uma criação muito rígida. Durante toda a sua infância, ele nunca vira qualquer demonstração de carinho que evidenciasse o amor dos seus pais. Ele sempre acreditou que o fato de sua mãe ter ficado estéril logo após ele ter nascido, era o único motivo que levou o casal à desgraça. Agripina era fruto de uma traição, por isso sempre fora uma mulher insegura.
    O tempo passava, passava... e nada daquele casal apaziguar. Certo dia, uma morena de olhos claros, portando um crachá, com as letras'' ONG Digital'' bem grandes, bateu à porta do problématico casal.
Ela fazia parte de uma organização não-gonvernamental que pregava a inclusão digital a todas as faixas etárias. Agripina e Esdras estavam na faixa dos quarenta e cinco, que era de responsabilidade da morena de olhos claros, Vandinéria. Cinco minutos de conversa e a mulher já tinha percebido que teria que usar muito o seu poder de persuação, caso quisesse convencer aquele casal a participar dos ensinos prestados pela ONG. Esdras, aparentemente, se sentiu muito ofendido, quando a moça disse que ele poderia conversar  com outra pessoa através do computador. Se eu tenho boca, por que eu iria precisar desse caixote branco? A visita terminou, e a moça, como previra, não conseguira êxito.
    Meses depois, Agripina foi visitar uma amiga, que morava a dez quarteirões do seu bairro. Bateu tanto no portão, que concluiu que ela não estava lá. Quando estava voltando, ouviu a voz da sua amiga.
- Eu estava vendo e falando com o meu namorado, por isso demorei para atender.
- Mas ele não está no estrangeiro?
-Sim, mas o computador e a internet  proporcionam a nós ótimos momentos, além de mega vantagens.
-Ah, entendi... Outro dia foi uma moça lá na minha casa, querendo que eu e o meu marido entrasse em uma escola de informática gratuita. Ela disse isso.
- E você entrou?
- Ah, não,  isso é besteira.
- Que pena... daria para você arrumar um belo marido pela internet.
- Sério? Como assim?
Sua amiga lhe explicou tudo, e Agripina ficou boquiaberta. Ela estava muito relutante, mas, depois de muito insistir, foi convecida a entrar em um bate-papo.
- Pode deixar que eu teclo por ti.
- Meu marido não vai gostar...
- Ele jamais ficará sabendo.
Agripina aceitou se apelidada de '' coroa charmosa''. Assim que entrou, um nick lhe enviou um recado. Pediu para conversar, a  coroa charmosa atendeu. À primeira vista, '' o cão sem dono'' se mostrou uma pessoa muito simpática.
    Daquele dia  em diante, Agripina passou a ir com muita frequência à casa da sua amiga, pois as palavras do cão era amáveis, levantava o ego de qualquer mulher. Nem as noitadas do seu marido faziam mais sentido. Agripina tinha se apaixonado pelo tal cão, mesmo sem ter visto a foto dele. A recíproca era verdadeira.
   Esdras, certo dia, estranhou a falta das crises de ciúme da esposa. Nesse angu tem caroço ...- falou em voz alta. Mas Agripina nem se incomadava com a falta de palavras bonitas que o seu marido nunca lhe dissera, agora, ele não fazia mais parte da sua vida. Sentia que logo conheceria o seu cão pessoalmente e sairia definitivamente daquela vida sofrida, sem amor, sem felicidade...
    Certo dia, o cão sem dono declarou-se eternamente apaixonado por Agripina. Ela chorou, não de tristeza, mas de felicidade, pois alguém, mesmo sem conhecê-la, estava amando-a. Neste dia, decidiu que iria se afastar do marido. Pediu abrigo para a sua amiga e, antes de retornar à sua casa, declarou todo o seu amor pelo cão, disse que aquele seria o dia em que ela mandaria o marido para o quinto dos infernos. O cão riu.
    Ao chegar em casa, como de costume, seu marido ainda não tinha chegado. Que diferença faz, pensou.
Alguns minutos depois, uma bela morena bateu na sua porta.
- Você? A essa hora?
- Dona Agripina, é uma urgência. Eu tinha que...
- A ONG funciona até a essa hora? Estou interessada em...
- Desculpe, tenho certeza que teremos muito tempo, mas o motivo que me traz aqui é outro.
- Qual?
- O seu marido foi hospitalizado, ele está no Hospital Municipal. Eu o levei lá...
Antes de Vandinéria terminar, Agripina correu para dentro, trocou de roupa e foi de encontro ao marido. Ao chegar lá, o que se via nos olhos daquela mulher era apenas desprezo, parecia que ela, de fato, queria que o marido fosse para o quinto dos infernos naquela noite. Foi de encontro ao médico, que lhe disse:
- O seu marido teve um infarto e...
- Diga logo, ele vai morrer, doutor, né, ELE TEM QUE MORRER!
- É próvavel que sim.
- Onde ele estava quando passou mal?
- Não sei, senhora. Uma mulher o trouxe aqui.
Uma enfermeira, com um olhar triste, entrou na sala do médico e perguntou:
- É a esposa do seu Esdras?
- Infelizmente sim, espero que isso termine hoje.
- Já terminou. Ele morreu agora pouco.
Por um momento, Agripina deixou uma mísera lágrima escapar dos seus olhos.
- Sinto muito, senhora.
- Não sinta.
- Não vai querer vê-lo?
- Embora ele não mereça, eu vou lá.
Ao chegar no quarto do falecido, parecia que o ar tinha se esvaído. Tudo girou.
- Apesar de tudo.. um casal feliz...nós...
E saiu do quarto. Tinha que cuidar do enterro. Quando estava na porta principal, uma das enfermeiras gritou pelo seu nome. Agripina ficou perturbada, pois a enfermeira parecia muita eufórica.
- Deu para perceber que a senhora não tinha um bom relacionamento com o seu esposo, mas, apesar de eu mesmo não saber o porquê, achei que a senhora gostaria de ver isso.
- Um pedaço de papel? Não sei ler.
- Eu leio para a senhora...


esdras@bip.com.br, senha Agripina, nick : ''o cão sem dono''.




  O mundo parou diante de Agripina. Agora, ela não mais evitava a saída das lágrimas. Lembrou-se da sua madrinha de casamento.
  A inclusão digital a levou a se apaixonar duas vezes pelo problemático marido.

20 de fevereiro de 2010

O Erro

      
     Simas Fonseca de Araújo Batista, para os íntimos, Dr. Simão ou Mão de Ferro, era o delegado de uma importante cidade do nordeste brasileiro, Recife. Era víuvo e tinha apenas um filho, Carlos. Dr. Simão era um homem extremamente estressado, o barulho de uma agulha, caindo no chão, já era o suficiente para deixá-lo fora de si. Não obstante a isso, na sua função, era um profissional muito justo e experiente. Nos vinte anos em que ficou no cargo ( ele deixou o cargo após cometer o maior erro da sua vida. Erro este que, você, meu leitor, ficará sabendo do final deste texto), tinha obtido êxito em quase todas as suas investigações. Seu percentual de aproveitamento era superior a noventa por cento. 
     O Mão de Ferro era considerado uma das personalidades mais importantes do nordeste brasileiro, fama essa que ficou evidente, quando ele perseguira e trancafiara a maior quadrilha de juízes do Brasil, que era a operadora de uma organização, que já tinha vendido mais de vinte mil sentenças. Depois dessa triunfante investigação, Dr. Simão saira em todas as capas dos mais importantes jornais do país. O The New York Times o classificou como '' O MELHOR PROFISSIONAL DO MUNDO'' na aréa criminalística.
     Apesar de todo  reconhecimento, Simas não estava conseguindo manter o seu ritmo, pois, no mês de dezembro, do ano dois mil, uma quadrilha estava tirando o sossego da elite pernambucana. O renomado delegado, apesar de toda a sua investigação, que era, para muitos, tímida, simples, ineficaz...não estava obtendo sucesso. Durante  toda quinzena deste mês, a quadrilha havia invadindo cerca de  cem mansões, no complexo do Alvorada. A associação do bairro já começara a questionar a fama do então ''melhor profissional do mundo''.
     Segundo as investigações do delegado, a quadrilha sempre agira quando ele estava no horário de almoço ou quando ele não estava de plantão, durante os feriados, o que o levou a suspeitar  do seu colega noturno ( ele trabalhava no matutino), pois o horário redigido nos boletins de ocorrência não coincidiam com os relatados pelos moradores assaltados.
     Depois de várias críticas e cobranças, Simas elaborou um plano um tanto perigoso: decidiu trabalhar no Natal. Todos ficaram perplexos, pois um delegado do gabarito dele jamais daria plantão em uma data tão festiva, mas ele tinha os seus motivos...
O delegado adjunto logo tratou de deixar bem claro que não trabalharia nesta data. Era tudo o que Simas queria.
     O Natal chegara, e a cidade de Recife estava excepcionalmente linda. As árvores reluziam como estrelas, as ruas, as praças, os parques estavam ''pra lá'' de convidativos. As mansões do Alvorada transpareciam as riquezas dos seus donos. Esse seria o dia D para o Mão de Ferro. Tinha certeza que  a tal quadrilha agiria neste dia. Ele, em parte, estava certo.
     O dia já estava se findando, e nada do telefone tocar. Até aquele presente momento, nenhum morador do Alvorada ligara, pedindo algum tipo de socorro. Ao anoitecer, um anônimo, um tanto receoso, denunciara uma possível invasão no bairro mais nobre do Recife. Segundo ele, um jovem estava rodeando duas mansões no elítico bairro. Simas, por algum motivo, conhecia aquela voz, mas, devido ao efeito adrenalina, não conseguiu identificar o dono dela.
     Dr: Simão estava radiante, pois, neste dia, iria dar fim às críticas e às cobranças, enfim, provaria que nunca deixara de ser ''o melhor profissional do mundo''. Depois de anotar todas as informações dadas pelo anônimo, dera ordem para todas as patrulhas, que estavam naquela região, ir de encontro ao endereço informado e aguardar a sua chegada.
    Chegou bem na hora, o alarme de uma das mansões disparou, denunciando o intruso.
    -  Vou entrar, se alguém tentar fugir, mete bala nele, entenderam?
    - Pode ser uma quadrilha, chefe.
    - ENTENDERAM? - Vários cabeças sinalizaram um sim. Ele entrou, sorrateiramente. Percebeu que a mansão estava deserta, os donos, provavelmente, estavam viajando. Começou a procurar pelo  jardim, como percebera, era enorme. A estufa seria um perfeito esconderijo. Um cerco desorganizado seria o suficiente para uma tentativa de fuga triunfante. Não! Não  daria créditos a ideias pessimistas, aquele seria o seu dia, e nada poderia atrapalhar
     Vários minutos se passaram, e ele ainda não tinha percorrido nem a terça metade do terreno da casa. Não precisaria. Ao adentrar, através da janela mais baixa, que era a do escritório, sua busca acabara de findar. Ali, diante dele, estava o invasor, revirando as gavetas do dono da mansão.
   - Perdeu! Vire. Qualquer movimento irregular e eu estouro os seus miolos. O ladrão obedeceu. Não portava nenhuma arma, não tinha nenhuma tatuagem, não usava brincos ( segundo o delegado, essas características eram comum a todos os assaltantes ). Não, algo estava errado. Não podia ser. Estava tendo um ilusão. Piscou. Como percebera, não era uma ilusão. Ali, prostado, com os olhos lacrimejantes, estava o seu único filho. Como poderia explicar para os outros que o delegado mais competente do Estado tinha um filho assaltante. Como?
     O silêncio era ensurdecedor, nenhum dois dissera qualquer palavra. O filho não acreditava que tinha sido pego. O pai não acredtiva que perseguira o  próprio filho.
    - Por quê? Para quê? Drogas? - Carlos balançou a cabeça, confirmando.
    - Saia daqui. Fuja! AGORA! Antes que eu faça uma besteira. Suma! Esqueça que tem uma família.
    - Pai...
    - Não me chame de pai. Saia da minha frente. O filho obedeceu.
    - Antes, me diga, qual é a sua relação com o delegado adjunto?
    - Ele me cobra para manter sigilo. Ele sempre soube.
    - Então, quero apenas te dizer que foi ele quem te denunciou.
    - Mas, não pode ser. Eu..
    - Suma!
       O filho virou, começou a correr em direção à porta.  Simas só chorava. Ajoelhou-se diante do nada, e começou a repensar a sua vida. Nada fez sentido naquele momento. De que adiantava  o seu ise não sabia cuidar  da  própria casa. Como pode ser enganado  pelo próprio filho, como? Concluiu que sempre estivera ausente, pensando apenas na sua glória, enquanto o seu filho vagueava pelo mundo do vício. TIROS!              
      Levantou-se bruscamente. Percebeu o grande erro da sua vida. Correu. Gritou. Era tarde de mais... Ao chegar na entrada da casa, no portão principal, seu filho estava caído, com o corpo coberto de sangue - Pegamos ele, chefe! - falou um dos policiais.
    - Não! Meu filho! Não! - o desespero tomou conta do prestigiado delegado. Ninguém havia percebido.Todos ficaram perplexos. Simas chorava desesperadamente.
   - Quem atirou? Quem?
   - Chefe, a sua ordem..
   - QUEM ATIROU?
   - Eu, chefe - disse um policial franzino, com uma voz extremamente abalada. Simas pegou a arma da mão dele, e disse: nunca, mas nunca coloque a sua carreira em primeiro lugar.
E um barulho de tiro ecoou naquele lugar.
     Ali, prostado no chão, com uma bala encravada em algum lugar da cabeça, estava '' o melhor profissional do mundo''.

8 de fevereiro de 2010

Uma Xícara de Café com Leite

Era uma tarde de uma sexta-feira bastante ensolarada do mês de abril. Dona Mercedes aguava as suas plantas, a fim de evitar que estas morressem queimadas. Era uma senhora de 46 anos, casada e não tinha filhos.
Neste dia, um simples ato surtiria em um efeito futuro inimaginável.
Como de costume,  deixou o portão aberto, a fim de facilitar a passagem do vento, pois o muro de sua casa era bastante alto, o que dificultava qualquer entrada de um mínimo assopro.
Tudo estava indo muito bem, as borboletas voavam em torno nas orquídeas,  e os colibris beijavam as estonteantes pétalas de rosas, mas ou ela estava enganada ou pareceu ter visto alguém atravessar o portão. Consultou o relógio, imaginando que o vulto pertencia ao seu marido, este, devido às sequelas de um AVC¹, praticava caminhadas todos dias, mas concluiu que não podia ser ele, pois ainda faltava trinta minutos para o habitual horário da sua chegada. Parou por um momento, ficou pensativa... Sim, alguém tinha entrando na sua casa, pois ouviu alguma coisa bater lá dentro. Não gritou, apenas decidiu conferir o que se passava. Sim, uma atitude perigosa, mas, sem dúvida, muito corajosa.
Cautelosamente, foi de encontro ao interior de sua casa. Ela estava certa. Um jovem, de aparência sofrida, estava desmaiado na sua sala, sua respiração era muito fraca. Ela logo tentou reanimá-lo, mas os seus truques caseiros não estavam dando certo. Então, já muito cansada das inúmeras tentativas, correu para a cozinha e consultou a porta da sua geladeira. O número da emergência estava ali. Pegou o telefone e começou a discar. Ocupado. Ela começou a ficar desesperada, porém logo se acalmou, ao perceber que o estranho recobrara a consciência.
- Meus Deus! Que susto, garoto. Está se sentido melhor?
- Sim - sua voz era quase inaudível - Desculpe por entrar assim...
- Não fale nada, você deve ter um bom motivo para ter feito isso. Quantos anos você tem?
- Dezesseis, mas por favor, não me denuncie, eu já vou sair, só gostaria, se não for pedir muito, que a senhora me arrumasse alguma coisa para comer, pois já faz uns cinco dias que não me alimento.
- Ah, então foi isso. Você desmaiou de fome. Não tenho nada pronto agora, mas vou lhe arrumar uma xícara de café com leite e, enquanto isso, prepararei alguma coisa para você comer.
A humilde senhora se retirou para a cozinha e, alguns minutos depois, trouxe uma magnifica xícara de café com leite. O intruso bebeu com o mesmo prazer que os magnatas degustam uísque escocês. O rapaz, que tinha olhos castanhos, cabelos loiros e rebeldes, magro e muito mal vestido ficara encantado com a hospitalidade daquela senhora. Sentiu vergonha.
Alguns minutos depois, o portão batera violentamente, o marido, Seu Ezequiel, acabara de chegar.
- Cozinhando? - Perguntou para o sua esposa - Tão cedo, algum evento especial?
- É que temos visita, na sala, não viu ele lá?
- Não tem ninguém na sala.
A senhora, incompreendida, foi até lá. Estava vazia. O intruso havia partido.
Dona Mercedes contou tudo ao seu esposo, este lhe dera uma bronca por '' dar de comer a um estranho''. POR QUE NÃO CHAMOU A POLÍCIA? - esbravejava.
A senhora, reconhecendo que se excedera com a sua bondade, apenas ouviu, calada, sem manifestar qualquer contrariedade à reação do seu esposo.
Muito tempo depois, na verdade, vinte anos, Dona Mercedes, agora viúva, estava aguando as suas plantas, já não tinha tanta rigidez nas pernas, seus cabelos estavam alvíssimos e sua pele deixava claro que ela já tinha muita experiência de vida. O portão estava aberto, mas nunca mais ninguém entrara sorrateiramente por ele.
A  velha nunca esqueceu daquele episódio, ela ansiava em rever o intruso, o menino que desmaiara na sua sala.
- Por onde anda aquele menino?- perguntava para a imensidão do vácuo a sua frente - Por que não perguntei o nome dele? - Daí em diante, tudo aconteceu de repente.
O seu corpo ficou pesado de mais para as suas pernas, sua visão apagara completamente e sua voz não era compatível com aquele momento.
Acordara, dois dias depois, em um luxuoso hospital. Estava atordoada, não sabia o tempo que passara ali. Tentou se comunicar com a sua companheira de quarto, mas esta olhava para o teto como se estivesse vendo uma constelação.
- Meu Deus! Onde estou?
- Senhora, acalme-se - o médico viera ao seu encontro. Os quartos daquele magnífico hospital eram monitorados por câmeras de última geração, pois assim, mesmo em casa, os médicos poderiam acessar o sistema e acompanhar a recuperação dos seus pacientes.
- A senhora sofreu um AVC, acid...
Com a língua meio enrolada, disse - Eu sei o que é isso, sofri anos com o meu marido, mas como vim parar aqui?
- O carteiro foi lhe entregar uma carta e a encontrou caída no meio das plantas. Ele a trouxe aqui.
- Que Deus o abençoe! Aqui, esse hospital...câmeras...muito caro... eu não tenho condiç...
- Isso é com a tesouraria. Quando tiver alta, passe lá e resolva a sua situação.
A mulher ficou desesperada. Vou sair daqui direto para a cadeia. Pensou. Seja o que Deus quiser.
Onze dias depois, estava de alta, sua língua desenrolara completamente, mas o lado esquerdo do seu corpo perdera os movimentos. Teria que fazer algumas sessões de fisioterapia. Dirigiu-se para a tesouraria, não sabia o que ia acontecer dali pra frente.
A tesoureira estava irredutível.
- Eu falei com o médico que não tinha condições. Eu falei que eu precisava ser transferida para um hospital público, eu...
- Isso é o que todos falam. Falarei com o diretor, já volto.
Por incrível que pareça, o diretor já estava a par da situação da humilde senhora.
- A senhora está liberada, pode ir. Alguém lá no céu gosta muito de você - disse a secretária, com a mesma cara de espanto de sua ouvinte.
Entregou as notas para a velha senhora, que não estava entendendo nada do que estava acontecendo.
- Pegou os óculos, que agora fariam parte da sua rotina e começou a ler vagarosamente aquela nota detalhada.
Todos os custos estavam ali, tomografia, ressonância, raios-x, consultas, medicamentos, quarto...
No final da nota, onde se lê valor a pagar e valor recebido, estava ali a frase que resumia e esclarecia os fatos. Os gastos foram enormes, a quantia a pagar era exorbitante, mas um simples ato fez a velha senhora regozijar e implorar pela presença do diretor do hospital. Pedido prontamente atendido.
Ainda sem acreditar, releu '' o valor recebido'':  Gastos pagos com uma xícara de café com leite.


P.S
¹ Acidente Vascular Cerebral; Derrame.
Baseado em contos populares.

7 de fevereiro de 2010

Como eu gostaria de ser

Que atire a primeira pedra aquele que nunca almejou ser diferente em alguma coisa.
Eu, pra falar a verdade, nunca estou contente comigo mesmo, sabe. Confesso que,  às vezes, me imagino na pele de algum amigo meu.
Há certas qualidades que, de tão nítidas, parecem evidenciar o caráter de uma pessoa. Na maioria das vezes, dois minutos de prosa já é o bastante para traçar o perfil deste indivíduo.
Comigo sempre foi diferente. As pessoas vivem dizendo que sou uma incógnita, e o pior de tudo é que elas estão certas. Com isso, vivo num dilema eterno, afinal, se eu mesmo ainda não me descobri, como posso exigir opiniões sobre  mim?
Eu queria ser mais claro, objetivo e reto, mas não sou assim. Nas discussões, sempre saio com o rabo entre as pernas, derrotado, humilhado e sentindo pena de mim mesmo. Covardia.
Sou um fraco, sim, aquele que vos fala não queria estar digitando isso,  mas...
Você pode estar se perguntando: Você diz que não sabe como é, mas está aí, falando tudo. É, mas neste  exato momento, estou me perguntando se o que eu digitei acima está coerente com a realidade. É complicado, eu sei.
Eu queria ter todas as palavras exatas para retrucar, quando alguém vir me importunar. Queria ser mais irônico, sarcástico, dissimulado, hipócrita e calculista. Espanto? Com certeza você já agiu assim.
Eu queria aprender a pagar com a mesma moeda, ser vingativo, mas, ao invés disso, devido aos ensinamentos que tive, vivo rindo para quem quer ver a minha desgraça. Isso não seria um comportamento hipócrita, Paulo? Seria? Não sei.
Eu queria ser irredutível, fazer impor a minha vontade, não dá o braço a torcer, ter a última palavra, defender meus ideais sem dar ouvidos aos contras, mas sempre vivo à procura de apoio, à procura de alguém que me diga '' excelente'', ''ótima ideia'', '' vai em frente''... Minha dependência chega a ser ridícula. Fazer o quê? Eu sou assim.
Eu queria ser mais autoconfiante, ser mais egoísta, ser mais racional, mas sempre dou ouvido ao emocional.
Eu queria ser mais coerente, eu queria ter, em meu vocabulário, um vasto conhecimento do português, para que eu pudesse empregar, neste texto, palavras lindas e difíceis, que te obrigaria a usar o buscador do Google.
Eu queria estar postando este texto sem me preocupar com os erros ortográticos e com  a sua opinião acerca dele.
Eu queria ser teu amigo fiel, aquele  a quem você contaria todas as suas aventuras, mentiras, êxitos, mas mal consigo a sua atenção.
Eu queria ser mais risonho, ser mais altruísta, temer o que as pessoas temem, gostar do que todo mundo gosta, odiar o que todo mundo odeia, mas parece que sempre estou do lado oposto.
Eu queria ter a coragem de citar nomes de pessoas aqui. Dizer o quão bom é tê-las em minha vida, falar da sua importância, elogiar, mas...
Eu queria ter a coragem para xingar pessoas aqui, dizê-las como eu as detesto, como elas contaminam o ambiente em que se encontram. Gritar um sonoro FODA-SE!, mas  estou falando para mim mesmo que isso não seria um comportamento adequado.
Eu queria agradar a gregos e troianos, mas nem Jesus agradou a todos.
Eu queria ser eu mesmo, mas nem sei se sou o que acho que sou.