14 de maio de 2010

Mentiras Verdadeiras

Roberto estava, desde muito cedo, sentado em um canto de uma imensa ala hospitalar. Como previra, sua enfermidade e sequelas eram irremediáveis. Não se entristecera, pois já esperava pelo pior. Levantou-se e dirigiu-se à portaria. Um grito o tirou da sua caminhada. No início do corredor [ ou seria no final? ], uma mulher gritava desesperadamente. Suas palavras transpareciam dor, tristeza, angústia, desesperança...[ meus pontinhos! ]. Ele não soube dizer o porquê, mas os  seus ouvidos começou a guiá-lo até a sala daquela paciente. Escutou o médico dizer à desesperada que, por algum motivo, que a medicina ainda não conseguia explicar, o  córtex dela deixara de decifrar as imagens captadas pelos  olhos. Aproximou-se da porta e instintivamente abriu-a. Três pares de olhos se fixaram em sua direção, o quarto par estava à procura do vazio, perdido na escuridão de uma pessoa que, no dia anterior, apreciara a beleza de uma feroz manifestação da natureza, uma imensa correnteza. No primeiro instante, o médico pediu para que o intruso se retirasse, mas depois de uma conversa particular, não só deixou-o  ficar, como convencera a paciente a escutar o que ele tinha para dizer.
- Tudo bem? - era uma pergunta um tanto inoportuna e inconveniente, convenhamos.
- Eu tenho cara de que está tudo bem? - o intruso ficou em silêncio, por um instante, e sorridentemente disparou:
- Já vi caras piores.

Apesar daquela infeliz circunstância, os dois iniciaram um empolgante diálogo. Ele falava muito, era perceptível a qualquer um. Ela escutava, com a aparência revelando o seu estado emocional. Sem dizer uma única palavra que pudesse revelar as suas intenções, Roberto consolava Danuza - é, esqueci de dizer o nome dela no início deste texto - as palavras que saíam da sua boca pareciam meticulosamente ensaiadas.Chegavam aos ouvidos dela como uma melodia Vivaldiana, suave, no tom normal  e agradável.

Dois dias após, ela recebera a tão esperada alta. Sua única tia paterna, que ela não via há mais de quinze anos, estava ali para acompanhá-la. Roberto, também.
- Eu não sei como você pode ajudá-la, mas só o fato de você me livrar desse fardo, que é cuidar de uma sobrinha cega, já é o bastante para que você goze da minha inteira confiança - Ela não acreditava que ele poderia cuidar bem dela, mas estava alheia às intenções dele. Se livrar da sobrinha era o objetivo.

Danuza estava radiante, três meses após o misterioso incidente, que a fez dormir e acordar em um sono profundo, negro, escuro...a vida começou a lhe mostrar as coisas belas que uma pessoa provida de visão não poderia ver. Roberto tinha se tornado  um acompanhante constante. Foi com ele que ela aprendeu a cozinhar no escuro, andar no escuro, ver no escuro e, acima de tudo, sentir no escuro. Semanas antes, tinha visitado uma amostra de escultores, suas mãos enxergavam cada curvatura daquelas belas obras. No outro dia, foi ao cinema, seus ouvidos lhe mostravam cada cena que era exibida, cada choro, sorriso, momentos de tensão eram captados pela sua audição. E no escuro do cinema, sua mão procurou por outra mão, seu nariz roçava o nariz do agradável intruso, seus olhos castanhos se fixaram nos olhos azuís dele - na verdade, ele tinha mentido sobre a cor dos olhos - e seus lábios se interagiam perfeitamente.

Roberto adorava rosas, tinha na sua casa um imenso roseiral. Com muito esforço, convencera Danuza a ir visitá-lo.
- São lindas! Perfumadas, delicadas, mas os espinhos. Ah, Roberto! A natureza, na sua perfeita imperfeição, fez brotar espinhos no meio das rosas. É triste, injusto, desigual... Eu me vejo, neste instante, como essa rosa, onde as circunstâncias são os espinhos e eu e você um broto de rosa a desabrochar.
- Querida, isso é uma questão de pontos de vista. Por que você não procura pensar que, até no meio dos espinhos, a natureza nos reserva uma bela rosa? - Ela riu. Sabia que sempre ouviria palavras de conforto daquela agradável companhia.

Dois anos depois, agora casados perante os seus consentimentos, o casal assistia a um programa de tv, quando foi surpreendido por uma inovadora notícia. Danuza não podia ver, mas teve certeza de que aquela voz, que anunciava eloquentemente um novo tratamento para curar a cegueria, pertencia ao seu médico. Não teve dúvidas, no dia seguinte,  iria  àquela clínica, onde os seus sonhos de se tornar uma fotógrafa fora assassinado. Como sempre, teve o apoio do seu marido, que tinha uma expressão de preocupação, que não passou despercebido por ela.
- Eu sei que você não quer que eu fique magoada, sei que não quer me ver frustada, mas eu tenho que tentar, querido. Preciso tentar.

Ela estava  vestindo uma roupa branca, deitada de bruços, em uma maca no canto de um grande quarto. Em poucos minutos, o médico anunciaria se a experiência tinha surtido resultado positivo. Roberto não estava lá.
Alguém levou a mão ao seu corpo, que virara pra frente do médico. Aos poucos, o tampão nos seus olhos foi sendo retirado. Ardeu. Seus olhos ardiam como fogo, mas a figura de um anjo, portando um estetoscópio era nítida. O córtex decifrara cada centímetro que os seus olhos podiam alcançar. As palavras fugiram da sua boca, o sentimento de reconquista era infinitamente grande.


Danuza procurava Roberto, cada minuto  dessa procura parecia eterno. Uma enfermeira a acompanhava. Não encontrava. Perguntava para si mesmo onde estaria o homem da sua vida, o homem que a fez enxegar no escuro. Não demorou muito para que seus ouvidos revelassem o paradeiro do sumido. Estava conversando com o balconista da lanchonete onde os médicos faziam suas refeições, mas algo estava errado. A voz era inconfundível, mas não podia ser. O homem que dialogava com o balconista exibia um olhar vago, perdido e distante.

Mil perguntas pipocaram na mente de Danuza, sem que ele pudesse vê-la, ficou perguntando a si mesmo como aquele homem, desprovido de visão, pode lhe ensinar  e mostrar tantas coisas no escuro. Claro, só uma pessoa experiente poderia exibir tanta confiança em si, pensou. Mas nada disso fazia diferença, ela o amava, e isso, somente isso, era o que importava naquele momento. Virou-se para a enfermeira e falou:
- Ele já sabe? Sabe que estou curada?
- Ainda não, quando tentamos, ele disse que queria ouvir da sua boca.
- Pois bem, chame-o ao meu quarto, mas não lhe diga uma só palavra.

-Então, amor, como se sente?
- Roberto, você sempre preocupado comigo. Acho que no fundo você sabia que nunca daria certo. Nunca verei os seus olhos verdes, nunca.
Ele a tomou em seus braços, beijou-a, consolou-a e um riso disfarçado surgiu no cantinho da sua boca.
Conversando consigo mesmo, calado, no íntimo cerebral, disse: mas eu tinha falado que os meus olhos eram azuis. E riu.

continua...