25 de setembro de 2009

 Olhos Azuis

- Você quer se casar comigo?
- Sim! Claro que sim. Sim, sim e sim – respondeu Clarice, visivelmente emocionada, à pergunta mais esperada dos últimos dois anos. Em um sábado primaveril, quero muitas flores vermelhas adornando o altar, pétalas de rosas enfeitando os tapetes... Vasos de malvas na entrada... Uma bela coroa de hortênsias azuis encrespada nos meus cabelos - sonhava, com um olhar distante e rosto abobadado.

Clarice era uma mulher de aparência extremamente marcante, olhos cor-de-palha-seca, pele morena, seus longos e encaracolados cabelos pretos, corpo esguio e lábios carnudos provocavam uma visão deslumbrante, para uma engenheira civil de 38 anos.

Cristiano era gentil, não era tão belo quanto a sua noiva, mas tinha alguns atributos físicos que era o sonho de qualquer perua metida a frequentadora do raio society.Os seus olhos pretos, lábios extremamente carnudos, roxos, e seu físico exalavam uma áurea de virilidade, fazendo com que ele aparentasse bem menos que os seus 41 anos.

Clarice e Cristiano namoravam a mais de dois anos, ele, na verdade, só tomou a iniciativa para pedi-la em casamento, porque havia sido promovido - era mecânico, mas o seu chefe, ao reparar as suas habilidades matemáticas, o promoveu a subgerente - pois considerou que ganharia o suficiente para poder sustentar sua futura família, mas, se eles passassem algumas dificuldades, o amor dele superaria todas elas – concluiu.

Três meses se passaram. O dia do casamento chegou. Ela estava mais linda do que de costume, vestia um longo azul-celado, um diadema encrespado com hortênsias azuis. Tanto o seu pescoço quanto as suas orelhas reluziam sobre um conjunto de águas-marinhas, e suas sapatilhas destoavam do conjunto em um cinza-prateado.

Cristiano, bem, estava como qualquer homem estaria. Camisa social branca, gravata à italiana e trajava um conjunto preto que tomara emprestado do seu gerente.
Os dois estavam regozijantes, não só porque iriam se casar, mas porque isso significava o fim de uma perseguição, protagonizada pelas famílias de ambos. A família dela nunca aceitou esse relacionamento, os seus pais diziam que ela tinha misturado sangue nobre com a ralé, que ela manchara e negara as suas raízes. Já o pai dele – ele perdera a sua mãe quando tinha 17 anos - sempre duvidara que uma mulher, pertencente a uma classe social mais elevada e extremamente bela, poderia se apaixonar e amar o seu filho.

A tarde caía, e os convidados, recepcionados por garçons, ao som de As Quatro Estações de Vivaldi, começaram a chegar. O casamento seria em um clube do amigo de Clarice, que lhe cedeu aquele espaço, com uma única condição: que toda a sujeira fosse retirada.
Tudo fora decorado conforme o desejo de Clarice.
Cristiano chegou por volta das 18h, acompanhado apenas pelo seu amigo, Pedro.
Ele admirou a grandeza daquela festa, e, embora faltasse mais de uma hora para o começo do evento, decidiu que esperar Clarice no altar, durante alguns minutos a mais, não estragaria a sua felicidade, pois sabia que logo-logo¹ essa espera terminaria – Não do jeito que ele pensara, mas terminaria.

Clarice, em sua casa, estava passando a maior provação da sua vida, a visita do filho do advogado da família a fez refletir se era realmente isso que ela queria – casar com um mecânico em ascensão a subgerente - se ela realmente amava Cristiano, ou tudo não passava de um método para contrariar os seus pais. Lúcio era um rapaz de 23 anos, atraente, cabelos extremamente lisos e pretos, físico de esportista, e seu belo par de olhos-azuis provocaram, em Clarice, um turbilhão de perguntas e dúvidas no seio mais íntimo do seu coração.

Ela sempre soube do interesse de Lúcio por ela, mas nunca tinha reparado nele alguma característica que a fizesse balançar. Ele, percebendo a inquietação dela, aproveitou e, insistentemente, pediu para ter uma última conversa com ela, a sós. Ela aceitou.

A jovialidade, bem como o interesse de Lúcio, fez a sua vaidade falar mais alto, pois, ao resistir, sem sucesso, a uma investida do belo rapaz, percebeu que ele realmente a desejava. Ela já não sabia se queria casar com Cristiano. Este permanecia no altar, confiante, sorridente, saudando cada convidado que subia no altar para lhe desejar felicidades.

Clarice pensava em Cristiano, sabia que ele a estava esperando. Pensava em Lúcio, que estava prometendo noites tórridas de amor, regadas a vinhos italianos e champanhes franceses. Enfim, depois de sua inquietação repentina por Lúcio, teve certeza de que não amava Cristiano o bastante para se casar. Decidiu colocar fim à espera dele.

Nos jardins, um silêncio estranho dominava o ambiente, Cristiano ainda sorria. Ao som de uma valsa, aquele longo silêncio foi quebrado. Ele atendera o celular, sorridente...
Cristiano, silenciosamente, com olhos tristes e molhados, desceu do altar. A espera terminou
Os dois se encontraram minutos depois e, ao contrário do que ela pensara, ele não estava nervoso. Ela lhe disse que não tinha certeza se ele representava a sua felicidade e que as dúvidas recentes diziam que ela não o faria feliz. Ele, triste, cabisbaixo, concordara que jamais se casaria se soubesse que ela não tinha certeza se era isso que queria. Então, antes de sair da vida dela, ele fez um pedido. - Quero que você me prometa uma coisa.

Ela, surpresa, respondeu - Sim.
- Prometa que vai ser feliz, por favor, prometa.
- Está bem, eu juro que vou ser muito feliz. Desejo que você encontre uma mulher que te mereça e que traga a felicidade que eu não posso te dar. E, ouvindo isso, Cristiano partiu definitivamente da sua vida. Ele perdera o seu amor para um par de olhos azuis.

Clarice e Lúcio logo engataram um romance que, além de muito esquentado, era aprovado pela família de ambos. Ver a filha se casar com um advogado era o sonho de sua mãe.

Algum tempo depois, Clarice e Lúcio já estavam partindo para a lua-de-mel em Paris, o sonho de consumo de todas as mulheres – bem, era assim que o rapaz pensava - Seria uma viagem inesquecível.

Se Clarice ainda tinha alguma dúvida quanto a sua escolha, esta foi completamente encerrada, o ar romântico daquela cidade a encantou tanto que desejou nunca mais sair dali – Ela ainda não sabia que o seu desejo iria se concretizar.

No último dia da lua-de-mel, a recém-casada foi surpreendida.

- Você gostaria de morar aqui?
- Você não pode estar falando sério. Morar aqui, um sonho! Ela cogitou em dizer que ia pensar, mas ao lembrar-se do seu não tão velho passado, decidiu que uma temporada em Paris não faria mal algum.
- Sim, mas apenas uma temporada, se eu me adaptar, ai poderemos ficar.
- Ótimo! Meu pai contatou uns amigos dele, tenho certeza que eles conseguirão um bom emprego para mim.

Passaram-se cinco anos, e Clarice ainda estava morando na Cidade Luz. Sua vida já não era tão animada como no início do seu casamento. Seu rosto já não era tão belo, seus cabelos estavam curtos, enfumaçados, malcheirosos e tinha adquirido uns quilos a mais. Morava em um apartamento pequeno, criava dois filhos extraconjugais do seu marido e ainda tinha que suportar os porres dele. Lúcio roubara toda a sua herança – os pais de Clarice foram vítimas de um misterioso acidente de carro, em uma visita que estes fizeram para ela- Esta, agora, sentia saudades de Cristiano, sabia que tinha feito a escolha errada, mas também sabia que não podia voltar atrás, pois ele já comemorava três anos de um casamento bastante harmonioso, com uma mulher que também tinha sido iludida por um par de olhos azuis.

Certo dia, na beira da sua cama, Clarice pensava, pensava e pensava sobre o que faria da sua vida. Pensou em suicídio, mas aprendera a amar os filhos do seu marido, sabia que, na sua falta, os meninos passariam por diversas tormentas, então, resolveu que iria se sacrificar - os meninos não tinham culpa da sua escolha - pensou. Ela chorou profundamente.

- Por que você está chorando, mamãe?
- Eu não estou chorando, filho, não estou.
- Está sim, eu estou vendo.
- Foi um cisco, estava tentando tirar, mas não consigo, pegue o espelho na gaveta para mim
- Está aqui, mamãe.

Ao olhar-se no espelho, lembrou do seu passado, tornou a sentir ódio de si mesma, pois o espelho sempre  mostrava as marcas da sua escolha.

Fitando-a no espelho, triste e chorosa, concluiu:

- Eu, de fato, ganhei um par de olhos azuis.






¹ as regras de pontuação da Língua Portuguesa determinam a inserção de uma vírgula entre esses termos, o autor, por considerar que a vírgula tira o sentido de rapidez ‘’desse termo’’², prefere logo-logo.
² o autor considera logo-logo uma palavra composta, assim como corre-corre, já-já, reco-reco, entre outras.