Era uma tarde de uma sexta-feira bastante ensolarada do mês de abril. Dona Mercedes aguava as suas plantas, a fim de evitar que estas morressem queimadas. Era uma senhora de 46 anos, casada e não tinha filhos.
Neste dia, um simples ato surtiria em um efeito futuro inimaginável.
Como de costume, deixou o portão aberto, a fim de facilitar a passagem do vento, pois o muro de sua casa era bastante alto, o que dificultava qualquer entrada de um mínimo assopro.
Tudo estava indo muito bem, as borboletas voavam em torno nas orquídeas, e os colibris beijavam as estonteantes pétalas de rosas, mas ou ela estava enganada ou pareceu ter visto alguém atravessar o portão. Consultou o relógio, imaginando que o vulto pertencia ao seu marido, este, devido às sequelas de um AVC¹, praticava caminhadas todos dias, mas concluiu que não podia ser ele, pois ainda faltava trinta minutos para o habitual horário da sua chegada. Parou por um momento, ficou pensativa... Sim, alguém tinha entrando na sua casa, pois ouviu alguma coisa bater lá dentro. Não gritou, apenas decidiu conferir o que se passava. Sim, uma atitude perigosa, mas, sem dúvida, muito corajosa.
Cautelosamente, foi de encontro ao interior de sua casa. Ela estava certa. Um jovem, de aparência sofrida, estava desmaiado na sua sala, sua respiração era muito fraca. Ela logo tentou reanimá-lo, mas os seus truques caseiros não estavam dando certo. Então, já muito cansada das inúmeras tentativas, correu para a cozinha e consultou a porta da sua geladeira. O número da emergência estava ali. Pegou o telefone e começou a discar. Ocupado. Ela começou a ficar desesperada, porém logo se acalmou, ao perceber que o estranho recobrara a consciência.
- Meus Deus! Que susto, garoto. Está se sentido melhor?
- Sim - sua voz era quase inaudível - Desculpe por entrar assim...
- Não fale nada, você deve ter um bom motivo para ter feito isso. Quantos anos você tem?
- Dezesseis, mas por favor, não me denuncie, eu já vou sair, só gostaria, se não for pedir muito, que a senhora me arrumasse alguma coisa para comer, pois já faz uns cinco dias que não me alimento.
- Ah, então foi isso. Você desmaiou de fome. Não tenho nada pronto agora, mas vou lhe arrumar uma xícara de café com leite e, enquanto isso, prepararei alguma coisa para você comer.
A humilde senhora se retirou para a cozinha e, alguns minutos depois, trouxe uma magnifica xícara de café com leite. O intruso bebeu com o mesmo prazer que os magnatas degustam uísque escocês. O rapaz, que tinha olhos castanhos, cabelos loiros e rebeldes, magro e muito mal vestido ficara encantado com a hospitalidade daquela senhora. Sentiu vergonha.
Alguns minutos depois, o portão batera violentamente, o marido, Seu Ezequiel, acabara de chegar.
- Cozinhando? - Perguntou para o sua esposa - Tão cedo, algum evento especial?
- É que temos visita, na sala, não viu ele lá?
- Não tem ninguém na sala.
A senhora, incompreendida, foi até lá. Estava vazia. O intruso havia partido.
Dona Mercedes contou tudo ao seu esposo, este lhe dera uma bronca por '' dar de comer a um estranho''. POR QUE NÃO CHAMOU A POLÍCIA? - esbravejava.
A senhora, reconhecendo que se excedera com a sua bondade, apenas ouviu, calada, sem manifestar qualquer contrariedade à reação do seu esposo.
Muito tempo depois, na verdade, vinte anos, Dona Mercedes, agora viúva, estava aguando as suas plantas, já não tinha tanta rigidez nas pernas, seus cabelos estavam alvíssimos e sua pele deixava claro que ela já tinha muita experiência de vida. O portão estava aberto, mas nunca mais ninguém entrara sorrateiramente por ele.
A velha nunca esqueceu daquele episódio, ela ansiava em rever o intruso, o menino que desmaiara na sua sala.
- Por onde anda aquele menino?- perguntava para a imensidão do vácuo a sua frente - Por que não perguntei o nome dele? - Daí em diante, tudo aconteceu de repente.
O seu corpo ficou pesado de mais para as suas pernas, sua visão apagara completamente e sua voz não era compatível com aquele momento.
Acordara, dois dias depois, em um luxuoso hospital. Estava atordoada, não sabia o tempo que passara ali. Tentou se comunicar com a sua companheira de quarto, mas esta olhava para o teto como se estivesse vendo uma constelação.
- Meu Deus! Onde estou?
- Senhora, acalme-se - o médico viera ao seu encontro. Os quartos daquele magnífico hospital eram monitorados por câmeras de última geração, pois assim, mesmo em casa, os médicos poderiam acessar o sistema e acompanhar a recuperação dos seus pacientes.
- A senhora sofreu um AVC, acid...
Com a língua meio enrolada, disse - Eu sei o que é isso, sofri anos com o meu marido, mas como vim parar aqui?
- O carteiro foi lhe entregar uma carta e a encontrou caída no meio das plantas. Ele a trouxe aqui.
- Que Deus o abençoe! Aqui, esse hospital...câmeras...muito caro... eu não tenho condiç...
- Isso é com a tesouraria. Quando tiver alta, passe lá e resolva a sua situação.
A mulher ficou desesperada. Vou sair daqui direto para a cadeia. Pensou. Seja o que Deus quiser.
Onze dias depois, estava de alta, sua língua desenrolara completamente, mas o lado esquerdo do seu corpo perdera os movimentos. Teria que fazer algumas sessões de fisioterapia. Dirigiu-se para a tesouraria, não sabia o que ia acontecer dali pra frente.
A tesoureira estava irredutível.
- Eu falei com o médico que não tinha condições. Eu falei que eu precisava ser transferida para um hospital público, eu...
- Isso é o que todos falam. Falarei com o diretor, já volto.
Por incrível que pareça, o diretor já estava a par da situação da humilde senhora.
- A senhora está liberada, pode ir. Alguém lá no céu gosta muito de você - disse a secretária, com a mesma cara de espanto de sua ouvinte.
Entregou as notas para a velha senhora, que não estava entendendo nada do que estava acontecendo.
- Pegou os óculos, que agora fariam parte da sua rotina e começou a ler vagarosamente aquela nota detalhada.
Todos os custos estavam ali, tomografia, ressonância, raios-x, consultas, medicamentos, quarto...
No final da nota, onde se lê valor a pagar e valor recebido, estava ali a frase que resumia e esclarecia os fatos. Os gastos foram enormes, a quantia a pagar era exorbitante, mas um simples ato fez a velha senhora regozijar e implorar pela presença do diretor do hospital. Pedido prontamente atendido.
Ainda sem acreditar, releu '' o valor recebido'': Gastos pagos com uma xícara de café com leite.
P.S
¹ Acidente Vascular Cerebral; Derrame.
Baseado em contos populares.
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