23 de fevereiro de 2010

Inclusão Digital

   





    Se tinha um casal, que ninguém sequer imaginava que um dia foi um casal apaixonado, Esdras e Agripina seria um ótimo exemplo. As brigas do casal eram tão constantes, que vizinhos, parentes e amigos nem intrometiam mais. ''Você merece coisa melhor, mulher, sai dessa'', ou, ''não sei como você aguenta aquela dali'' eram as únicas frases que ambos ouviam.
    A madrinha do casal, uma senhora de oitenta anos, era a única pessoa que ainda acreditava no amor dos dois. Ela vivia dizendo: Esdras nunca deixou de amá-la, apenas perdeu o modo de demonstrar. Para ele, dizia: o ciúme excessivo de Agripina significa apenas que ela ainda o ama, Esdras. Este tivera uma criação muito rígida. Durante toda a sua infância, ele nunca vira qualquer demonstração de carinho que evidenciasse o amor dos seus pais. Ele sempre acreditou que o fato de sua mãe ter ficado estéril logo após ele ter nascido, era o único motivo que levou o casal à desgraça. Agripina era fruto de uma traição, por isso sempre fora uma mulher insegura.
    O tempo passava, passava... e nada daquele casal apaziguar. Certo dia, uma morena de olhos claros, portando um crachá, com as letras'' ONG Digital'' bem grandes, bateu à porta do problématico casal.
Ela fazia parte de uma organização não-gonvernamental que pregava a inclusão digital a todas as faixas etárias. Agripina e Esdras estavam na faixa dos quarenta e cinco, que era de responsabilidade da morena de olhos claros, Vandinéria. Cinco minutos de conversa e a mulher já tinha percebido que teria que usar muito o seu poder de persuação, caso quisesse convencer aquele casal a participar dos ensinos prestados pela ONG. Esdras, aparentemente, se sentiu muito ofendido, quando a moça disse que ele poderia conversar  com outra pessoa através do computador. Se eu tenho boca, por que eu iria precisar desse caixote branco? A visita terminou, e a moça, como previra, não conseguira êxito.
    Meses depois, Agripina foi visitar uma amiga, que morava a dez quarteirões do seu bairro. Bateu tanto no portão, que concluiu que ela não estava lá. Quando estava voltando, ouviu a voz da sua amiga.
- Eu estava vendo e falando com o meu namorado, por isso demorei para atender.
- Mas ele não está no estrangeiro?
-Sim, mas o computador e a internet  proporcionam a nós ótimos momentos, além de mega vantagens.
-Ah, entendi... Outro dia foi uma moça lá na minha casa, querendo que eu e o meu marido entrasse em uma escola de informática gratuita. Ela disse isso.
- E você entrou?
- Ah, não,  isso é besteira.
- Que pena... daria para você arrumar um belo marido pela internet.
- Sério? Como assim?
Sua amiga lhe explicou tudo, e Agripina ficou boquiaberta. Ela estava muito relutante, mas, depois de muito insistir, foi convecida a entrar em um bate-papo.
- Pode deixar que eu teclo por ti.
- Meu marido não vai gostar...
- Ele jamais ficará sabendo.
Agripina aceitou se apelidada de '' coroa charmosa''. Assim que entrou, um nick lhe enviou um recado. Pediu para conversar, a  coroa charmosa atendeu. À primeira vista, '' o cão sem dono'' se mostrou uma pessoa muito simpática.
    Daquele dia  em diante, Agripina passou a ir com muita frequência à casa da sua amiga, pois as palavras do cão era amáveis, levantava o ego de qualquer mulher. Nem as noitadas do seu marido faziam mais sentido. Agripina tinha se apaixonado pelo tal cão, mesmo sem ter visto a foto dele. A recíproca era verdadeira.
   Esdras, certo dia, estranhou a falta das crises de ciúme da esposa. Nesse angu tem caroço ...- falou em voz alta. Mas Agripina nem se incomadava com a falta de palavras bonitas que o seu marido nunca lhe dissera, agora, ele não fazia mais parte da sua vida. Sentia que logo conheceria o seu cão pessoalmente e sairia definitivamente daquela vida sofrida, sem amor, sem felicidade...
    Certo dia, o cão sem dono declarou-se eternamente apaixonado por Agripina. Ela chorou, não de tristeza, mas de felicidade, pois alguém, mesmo sem conhecê-la, estava amando-a. Neste dia, decidiu que iria se afastar do marido. Pediu abrigo para a sua amiga e, antes de retornar à sua casa, declarou todo o seu amor pelo cão, disse que aquele seria o dia em que ela mandaria o marido para o quinto dos infernos. O cão riu.
    Ao chegar em casa, como de costume, seu marido ainda não tinha chegado. Que diferença faz, pensou.
Alguns minutos depois, uma bela morena bateu na sua porta.
- Você? A essa hora?
- Dona Agripina, é uma urgência. Eu tinha que...
- A ONG funciona até a essa hora? Estou interessada em...
- Desculpe, tenho certeza que teremos muito tempo, mas o motivo que me traz aqui é outro.
- Qual?
- O seu marido foi hospitalizado, ele está no Hospital Municipal. Eu o levei lá...
Antes de Vandinéria terminar, Agripina correu para dentro, trocou de roupa e foi de encontro ao marido. Ao chegar lá, o que se via nos olhos daquela mulher era apenas desprezo, parecia que ela, de fato, queria que o marido fosse para o quinto dos infernos naquela noite. Foi de encontro ao médico, que lhe disse:
- O seu marido teve um infarto e...
- Diga logo, ele vai morrer, doutor, né, ELE TEM QUE MORRER!
- É próvavel que sim.
- Onde ele estava quando passou mal?
- Não sei, senhora. Uma mulher o trouxe aqui.
Uma enfermeira, com um olhar triste, entrou na sala do médico e perguntou:
- É a esposa do seu Esdras?
- Infelizmente sim, espero que isso termine hoje.
- Já terminou. Ele morreu agora pouco.
Por um momento, Agripina deixou uma mísera lágrima escapar dos seus olhos.
- Sinto muito, senhora.
- Não sinta.
- Não vai querer vê-lo?
- Embora ele não mereça, eu vou lá.
Ao chegar no quarto do falecido, parecia que o ar tinha se esvaído. Tudo girou.
- Apesar de tudo.. um casal feliz...nós...
E saiu do quarto. Tinha que cuidar do enterro. Quando estava na porta principal, uma das enfermeiras gritou pelo seu nome. Agripina ficou perturbada, pois a enfermeira parecia muita eufórica.
- Deu para perceber que a senhora não tinha um bom relacionamento com o seu esposo, mas, apesar de eu mesmo não saber o porquê, achei que a senhora gostaria de ver isso.
- Um pedaço de papel? Não sei ler.
- Eu leio para a senhora...


esdras@bip.com.br, senha Agripina, nick : ''o cão sem dono''.




  O mundo parou diante de Agripina. Agora, ela não mais evitava a saída das lágrimas. Lembrou-se da sua madrinha de casamento.
  A inclusão digital a levou a se apaixonar duas vezes pelo problemático marido.

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