27 de fevereiro de 2010

Portas

O corredor estava  escuro. Augusto caminhava em direção à única porta que se podia ver. Uma luz no fim do túnel, pensou. Ele andava, andava...mas teve a impressão de que quanto mais andava mais a porta se distanciava. Depois de um certo tempo, como num passe de mágica, um porta surgiu à sua esquerda. Tentou olhar pelo buraco na fechadura, mas percebeu que também estava escuro. Não hesitou, levou a mão à maçaneta e a girou. A porta abriu, ecoando um ruído ensurdecedor.

- Eu entro nessa ou naquela? - perguntou para si mesmo.
Não demorou para ele chegar à conclusão que, talvez, a outra porta não era para ser alcançada, mas estava lá apenas para comprovar que não se deve caminhar para o desconhecido. Também não demorou para ele perceber que desconhecia o interior do que havia atrás da única porta que abrira ao seu lado, mas concluiu que não tinha nada a perder. Entrou. No primeiro instante, ficou confuso.
- Minha casa?!- Ficou feliz, imensamente feliz. Percorreu o interior da sua casa como se fosse a primeira vez. Sua única irmã e seus dois irmãos estavam almoçando, diante de uma mesa grande e farta. Aproximou-se da mesa e puxou uma cadeira que, em matéria de qualidade e cor, destoava de todo o resto. Não sentiu fome e, pelo que pode perceber, não era o único, os seus irmãos brincavam com a comida, mas nenhum deles estava alimentando de fato. Estão tristes, pensou.
- Por que estão tão tristes? O que aconteceu? - perguntou, mas ninguém lhe dava ouvidos. Por um momento, seu irmão mais velho olhou em sua direção, com uma expressão triste e vaga, mas não disse uma única palavra. Ficou confuso. Seja o que for que tivesse acontecido, ele tinha que saber. Levantou e seguiu em direção à escada, que dava acesso ao segundo andar.
Portas, muitas portas. Caminhou em direção a porta do seu quarto. Ao entrar, viu sua filha, de cinco anos, deitada em sua cama, ela estava triste, soluçava, choramingava o nome do pai.
Correu e a abraçou, acariciou os seus longos cabelos , e, embora não soubesse o motivo, consolou-a. Ela adormeceu. Ele saiu do quarto. Decidiu que tinha saber, e rápido, pois tudo estava muito confuso. Antes de alcançar a escada, um enorme retrato, pintado em preto e branco, olhava em sua direção. Aproximou-se e então tudo ficou claro. Ao ler o rodapé da foto dos seus pais, percebeu o motivo da tristeza de todos.
- Cinco anos! Parece que vocês estavam comigo ontem, me acariciando, me dando conselhos, brigando comigo, me amando, e agora já faz cinco anos que vocês partiram - falou, com a voz triste.
Foi de encontro ao seu irmãos. Decidiu que tinha que encorajá-los. Ao chegar na cozinha, olhou para o rosto de todos, respirou e começou a discursar.
Alguns minutos depois, percebeu que suas palavras não surtiram o menor efeito. Eu tentei...
Resolveu fazer algo que tinha certeza que todos já tinham feito: visitar o túmulo dos pais.
Augusto quis comprar algumas flores, mas concluiu que, ou ele tinha esquecido o dinheiro em casa, ou perdera, durante o longo trajeto no corredor escuro, pois o bolso esquerdo estava rasgado.
- Minha presença é mais significativa que meras flores.

O cemitério estava deserto, o único som que se podia escutar era o alegre assobio do coveiro, que o fazia espontaneamente, enquanto cavava mais um túmulo.
Ao chegar no túmulo dos pais, se espantou com a quantidade de flores e coroas que estavam depositados sobre a lápide. Que exagero!
- Bem pai, mãe, eu não trouxe flores, mas sim o meu eterno amor e agradecimento por tudo que vocês fizeram por mim. A Angélica tem os cabelos iguais aos seus, mãe, mas os olhos e o nariz dela são todos seus, pai. Vocês fazem tanta falta. Como eu queria ter a certeza de que vocês estão me escutando.
- Nós sempre escutamos você, filho - era a voz de duas pessoas, em coro.
Augusto piscou, mas a imagem dos seus pais não despareceu como previra.
- Isso é um sonho?
- Você pode chamar do que quiser: sonho, loucura, imaginação fértil...o fato é que sempre escutamos você, os seus irmãos e a nossa linda netinha - disse a mãe, suavemente.
Tudo ficou mais confuso ainda. Augusto, por um momento, pensou estar tendo uma alucinação. Respirou fundo e olhou para o túmulo coberto de flores.
- Posso?
- Claro que sim, ele é todo seu.
Afastou algumas flores da margem do túmulo e sentou.
Ninguém falou mais nada. Augusto contentava em ficar apenas admirando a imagem dos pais
- Parece tão real...
E despertou. Tinha adormecido sobre o túmulo dos pais.
- Que sonho lindo! Tenho que contar aos meus irmãos. Levantou-se e, ao perceber que as flores estavam no exato lugar que colocara no seu ''sonho'', estranhou. Decidiu arrumá-las.
De tudo que tinha acontecido neste dia, nada lhe chamou mais atenção do que as letras de pedras encrustadas na lápide. Não tinha percebido, pois as flores ocupavam quase toda superfície. Ao ler o que estava escrito, tudo ficou claro. Lembrou-se do corredor escuro, da tristeza dos irmãos, do choro da filha, da falta de atenção que não estavam lhe dando e do bolso esquerdo rasgado. Não era um rasgo comum. Era uma marca.
Ao fixar os olhos seguidamente nas letrinhas, leu o próprio nome, indicando que ele tinha morrido no dia anterior. Foi aí que tudo mudou. Estava de volta ao corredor escuro, dessa vez, não estava sozinho: os seus pais o acompanhava. Daí em diante, os três rumaram em direção à unica porta que se podia ver. Augusto caminhava, caminhava e caminhava, sem ter a certeza de que um dia alcançaria o desconhecido que havia por detrás daquela porta.



Foto: Google Imagens.

23 de fevereiro de 2010

Inclusão Digital

   





    Se tinha um casal, que ninguém sequer imaginava que um dia foi um casal apaixonado, Esdras e Agripina seria um ótimo exemplo. As brigas do casal eram tão constantes, que vizinhos, parentes e amigos nem intrometiam mais. ''Você merece coisa melhor, mulher, sai dessa'', ou, ''não sei como você aguenta aquela dali'' eram as únicas frases que ambos ouviam.
    A madrinha do casal, uma senhora de oitenta anos, era a única pessoa que ainda acreditava no amor dos dois. Ela vivia dizendo: Esdras nunca deixou de amá-la, apenas perdeu o modo de demonstrar. Para ele, dizia: o ciúme excessivo de Agripina significa apenas que ela ainda o ama, Esdras. Este tivera uma criação muito rígida. Durante toda a sua infância, ele nunca vira qualquer demonstração de carinho que evidenciasse o amor dos seus pais. Ele sempre acreditou que o fato de sua mãe ter ficado estéril logo após ele ter nascido, era o único motivo que levou o casal à desgraça. Agripina era fruto de uma traição, por isso sempre fora uma mulher insegura.
    O tempo passava, passava... e nada daquele casal apaziguar. Certo dia, uma morena de olhos claros, portando um crachá, com as letras'' ONG Digital'' bem grandes, bateu à porta do problématico casal.
Ela fazia parte de uma organização não-gonvernamental que pregava a inclusão digital a todas as faixas etárias. Agripina e Esdras estavam na faixa dos quarenta e cinco, que era de responsabilidade da morena de olhos claros, Vandinéria. Cinco minutos de conversa e a mulher já tinha percebido que teria que usar muito o seu poder de persuação, caso quisesse convencer aquele casal a participar dos ensinos prestados pela ONG. Esdras, aparentemente, se sentiu muito ofendido, quando a moça disse que ele poderia conversar  com outra pessoa através do computador. Se eu tenho boca, por que eu iria precisar desse caixote branco? A visita terminou, e a moça, como previra, não conseguira êxito.
    Meses depois, Agripina foi visitar uma amiga, que morava a dez quarteirões do seu bairro. Bateu tanto no portão, que concluiu que ela não estava lá. Quando estava voltando, ouviu a voz da sua amiga.
- Eu estava vendo e falando com o meu namorado, por isso demorei para atender.
- Mas ele não está no estrangeiro?
-Sim, mas o computador e a internet  proporcionam a nós ótimos momentos, além de mega vantagens.
-Ah, entendi... Outro dia foi uma moça lá na minha casa, querendo que eu e o meu marido entrasse em uma escola de informática gratuita. Ela disse isso.
- E você entrou?
- Ah, não,  isso é besteira.
- Que pena... daria para você arrumar um belo marido pela internet.
- Sério? Como assim?
Sua amiga lhe explicou tudo, e Agripina ficou boquiaberta. Ela estava muito relutante, mas, depois de muito insistir, foi convecida a entrar em um bate-papo.
- Pode deixar que eu teclo por ti.
- Meu marido não vai gostar...
- Ele jamais ficará sabendo.
Agripina aceitou se apelidada de '' coroa charmosa''. Assim que entrou, um nick lhe enviou um recado. Pediu para conversar, a  coroa charmosa atendeu. À primeira vista, '' o cão sem dono'' se mostrou uma pessoa muito simpática.
    Daquele dia  em diante, Agripina passou a ir com muita frequência à casa da sua amiga, pois as palavras do cão era amáveis, levantava o ego de qualquer mulher. Nem as noitadas do seu marido faziam mais sentido. Agripina tinha se apaixonado pelo tal cão, mesmo sem ter visto a foto dele. A recíproca era verdadeira.
   Esdras, certo dia, estranhou a falta das crises de ciúme da esposa. Nesse angu tem caroço ...- falou em voz alta. Mas Agripina nem se incomadava com a falta de palavras bonitas que o seu marido nunca lhe dissera, agora, ele não fazia mais parte da sua vida. Sentia que logo conheceria o seu cão pessoalmente e sairia definitivamente daquela vida sofrida, sem amor, sem felicidade...
    Certo dia, o cão sem dono declarou-se eternamente apaixonado por Agripina. Ela chorou, não de tristeza, mas de felicidade, pois alguém, mesmo sem conhecê-la, estava amando-a. Neste dia, decidiu que iria se afastar do marido. Pediu abrigo para a sua amiga e, antes de retornar à sua casa, declarou todo o seu amor pelo cão, disse que aquele seria o dia em que ela mandaria o marido para o quinto dos infernos. O cão riu.
    Ao chegar em casa, como de costume, seu marido ainda não tinha chegado. Que diferença faz, pensou.
Alguns minutos depois, uma bela morena bateu na sua porta.
- Você? A essa hora?
- Dona Agripina, é uma urgência. Eu tinha que...
- A ONG funciona até a essa hora? Estou interessada em...
- Desculpe, tenho certeza que teremos muito tempo, mas o motivo que me traz aqui é outro.
- Qual?
- O seu marido foi hospitalizado, ele está no Hospital Municipal. Eu o levei lá...
Antes de Vandinéria terminar, Agripina correu para dentro, trocou de roupa e foi de encontro ao marido. Ao chegar lá, o que se via nos olhos daquela mulher era apenas desprezo, parecia que ela, de fato, queria que o marido fosse para o quinto dos infernos naquela noite. Foi de encontro ao médico, que lhe disse:
- O seu marido teve um infarto e...
- Diga logo, ele vai morrer, doutor, né, ELE TEM QUE MORRER!
- É próvavel que sim.
- Onde ele estava quando passou mal?
- Não sei, senhora. Uma mulher o trouxe aqui.
Uma enfermeira, com um olhar triste, entrou na sala do médico e perguntou:
- É a esposa do seu Esdras?
- Infelizmente sim, espero que isso termine hoje.
- Já terminou. Ele morreu agora pouco.
Por um momento, Agripina deixou uma mísera lágrima escapar dos seus olhos.
- Sinto muito, senhora.
- Não sinta.
- Não vai querer vê-lo?
- Embora ele não mereça, eu vou lá.
Ao chegar no quarto do falecido, parecia que o ar tinha se esvaído. Tudo girou.
- Apesar de tudo.. um casal feliz...nós...
E saiu do quarto. Tinha que cuidar do enterro. Quando estava na porta principal, uma das enfermeiras gritou pelo seu nome. Agripina ficou perturbada, pois a enfermeira parecia muita eufórica.
- Deu para perceber que a senhora não tinha um bom relacionamento com o seu esposo, mas, apesar de eu mesmo não saber o porquê, achei que a senhora gostaria de ver isso.
- Um pedaço de papel? Não sei ler.
- Eu leio para a senhora...


esdras@bip.com.br, senha Agripina, nick : ''o cão sem dono''.




  O mundo parou diante de Agripina. Agora, ela não mais evitava a saída das lágrimas. Lembrou-se da sua madrinha de casamento.
  A inclusão digital a levou a se apaixonar duas vezes pelo problemático marido.

20 de fevereiro de 2010

O Erro

      
     Simas Fonseca de Araújo Batista, para os íntimos, Dr. Simão ou Mão de Ferro, era o delegado de uma importante cidade do nordeste brasileiro, Recife. Era víuvo e tinha apenas um filho, Carlos. Dr. Simão era um homem extremamente estressado, o barulho de uma agulha, caindo no chão, já era o suficiente para deixá-lo fora de si. Não obstante a isso, na sua função, era um profissional muito justo e experiente. Nos vinte anos em que ficou no cargo ( ele deixou o cargo após cometer o maior erro da sua vida. Erro este que, você, meu leitor, ficará sabendo do final deste texto), tinha obtido êxito em quase todas as suas investigações. Seu percentual de aproveitamento era superior a noventa por cento. 
     O Mão de Ferro era considerado uma das personalidades mais importantes do nordeste brasileiro, fama essa que ficou evidente, quando ele perseguira e trancafiara a maior quadrilha de juízes do Brasil, que era a operadora de uma organização, que já tinha vendido mais de vinte mil sentenças. Depois dessa triunfante investigação, Dr. Simão saira em todas as capas dos mais importantes jornais do país. O The New York Times o classificou como '' O MELHOR PROFISSIONAL DO MUNDO'' na aréa criminalística.
     Apesar de todo  reconhecimento, Simas não estava conseguindo manter o seu ritmo, pois, no mês de dezembro, do ano dois mil, uma quadrilha estava tirando o sossego da elite pernambucana. O renomado delegado, apesar de toda a sua investigação, que era, para muitos, tímida, simples, ineficaz...não estava obtendo sucesso. Durante  toda quinzena deste mês, a quadrilha havia invadindo cerca de  cem mansões, no complexo do Alvorada. A associação do bairro já começara a questionar a fama do então ''melhor profissional do mundo''.
     Segundo as investigações do delegado, a quadrilha sempre agira quando ele estava no horário de almoço ou quando ele não estava de plantão, durante os feriados, o que o levou a suspeitar  do seu colega noturno ( ele trabalhava no matutino), pois o horário redigido nos boletins de ocorrência não coincidiam com os relatados pelos moradores assaltados.
     Depois de várias críticas e cobranças, Simas elaborou um plano um tanto perigoso: decidiu trabalhar no Natal. Todos ficaram perplexos, pois um delegado do gabarito dele jamais daria plantão em uma data tão festiva, mas ele tinha os seus motivos...
O delegado adjunto logo tratou de deixar bem claro que não trabalharia nesta data. Era tudo o que Simas queria.
     O Natal chegara, e a cidade de Recife estava excepcionalmente linda. As árvores reluziam como estrelas, as ruas, as praças, os parques estavam ''pra lá'' de convidativos. As mansões do Alvorada transpareciam as riquezas dos seus donos. Esse seria o dia D para o Mão de Ferro. Tinha certeza que  a tal quadrilha agiria neste dia. Ele, em parte, estava certo.
     O dia já estava se findando, e nada do telefone tocar. Até aquele presente momento, nenhum morador do Alvorada ligara, pedindo algum tipo de socorro. Ao anoitecer, um anônimo, um tanto receoso, denunciara uma possível invasão no bairro mais nobre do Recife. Segundo ele, um jovem estava rodeando duas mansões no elítico bairro. Simas, por algum motivo, conhecia aquela voz, mas, devido ao efeito adrenalina, não conseguiu identificar o dono dela.
     Dr: Simão estava radiante, pois, neste dia, iria dar fim às críticas e às cobranças, enfim, provaria que nunca deixara de ser ''o melhor profissional do mundo''. Depois de anotar todas as informações dadas pelo anônimo, dera ordem para todas as patrulhas, que estavam naquela região, ir de encontro ao endereço informado e aguardar a sua chegada.
    Chegou bem na hora, o alarme de uma das mansões disparou, denunciando o intruso.
    -  Vou entrar, se alguém tentar fugir, mete bala nele, entenderam?
    - Pode ser uma quadrilha, chefe.
    - ENTENDERAM? - Vários cabeças sinalizaram um sim. Ele entrou, sorrateiramente. Percebeu que a mansão estava deserta, os donos, provavelmente, estavam viajando. Começou a procurar pelo  jardim, como percebera, era enorme. A estufa seria um perfeito esconderijo. Um cerco desorganizado seria o suficiente para uma tentativa de fuga triunfante. Não! Não  daria créditos a ideias pessimistas, aquele seria o seu dia, e nada poderia atrapalhar
     Vários minutos se passaram, e ele ainda não tinha percorrido nem a terça metade do terreno da casa. Não precisaria. Ao adentrar, através da janela mais baixa, que era a do escritório, sua busca acabara de findar. Ali, diante dele, estava o invasor, revirando as gavetas do dono da mansão.
   - Perdeu! Vire. Qualquer movimento irregular e eu estouro os seus miolos. O ladrão obedeceu. Não portava nenhuma arma, não tinha nenhuma tatuagem, não usava brincos ( segundo o delegado, essas características eram comum a todos os assaltantes ). Não, algo estava errado. Não podia ser. Estava tendo um ilusão. Piscou. Como percebera, não era uma ilusão. Ali, prostado, com os olhos lacrimejantes, estava o seu único filho. Como poderia explicar para os outros que o delegado mais competente do Estado tinha um filho assaltante. Como?
     O silêncio era ensurdecedor, nenhum dois dissera qualquer palavra. O filho não acreditava que tinha sido pego. O pai não acredtiva que perseguira o  próprio filho.
    - Por quê? Para quê? Drogas? - Carlos balançou a cabeça, confirmando.
    - Saia daqui. Fuja! AGORA! Antes que eu faça uma besteira. Suma! Esqueça que tem uma família.
    - Pai...
    - Não me chame de pai. Saia da minha frente. O filho obedeceu.
    - Antes, me diga, qual é a sua relação com o delegado adjunto?
    - Ele me cobra para manter sigilo. Ele sempre soube.
    - Então, quero apenas te dizer que foi ele quem te denunciou.
    - Mas, não pode ser. Eu..
    - Suma!
       O filho virou, começou a correr em direção à porta.  Simas só chorava. Ajoelhou-se diante do nada, e começou a repensar a sua vida. Nada fez sentido naquele momento. De que adiantava  o seu ise não sabia cuidar  da  própria casa. Como pode ser enganado  pelo próprio filho, como? Concluiu que sempre estivera ausente, pensando apenas na sua glória, enquanto o seu filho vagueava pelo mundo do vício. TIROS!              
      Levantou-se bruscamente. Percebeu o grande erro da sua vida. Correu. Gritou. Era tarde de mais... Ao chegar na entrada da casa, no portão principal, seu filho estava caído, com o corpo coberto de sangue - Pegamos ele, chefe! - falou um dos policiais.
    - Não! Meu filho! Não! - o desespero tomou conta do prestigiado delegado. Ninguém havia percebido.Todos ficaram perplexos. Simas chorava desesperadamente.
   - Quem atirou? Quem?
   - Chefe, a sua ordem..
   - QUEM ATIROU?
   - Eu, chefe - disse um policial franzino, com uma voz extremamente abalada. Simas pegou a arma da mão dele, e disse: nunca, mas nunca coloque a sua carreira em primeiro lugar.
E um barulho de tiro ecoou naquele lugar.
     Ali, prostado no chão, com uma bala encravada em algum lugar da cabeça, estava '' o melhor profissional do mundo''.

8 de fevereiro de 2010

Uma Xícara de Café com Leite

Era uma tarde de uma sexta-feira bastante ensolarada do mês de abril. Dona Mercedes aguava as suas plantas, a fim de evitar que estas morressem queimadas. Era uma senhora de 46 anos, casada e não tinha filhos.
Neste dia, um simples ato surtiria em um efeito futuro inimaginável.
Como de costume,  deixou o portão aberto, a fim de facilitar a passagem do vento, pois o muro de sua casa era bastante alto, o que dificultava qualquer entrada de um mínimo assopro.
Tudo estava indo muito bem, as borboletas voavam em torno nas orquídeas,  e os colibris beijavam as estonteantes pétalas de rosas, mas ou ela estava enganada ou pareceu ter visto alguém atravessar o portão. Consultou o relógio, imaginando que o vulto pertencia ao seu marido, este, devido às sequelas de um AVC¹, praticava caminhadas todos dias, mas concluiu que não podia ser ele, pois ainda faltava trinta minutos para o habitual horário da sua chegada. Parou por um momento, ficou pensativa... Sim, alguém tinha entrando na sua casa, pois ouviu alguma coisa bater lá dentro. Não gritou, apenas decidiu conferir o que se passava. Sim, uma atitude perigosa, mas, sem dúvida, muito corajosa.
Cautelosamente, foi de encontro ao interior de sua casa. Ela estava certa. Um jovem, de aparência sofrida, estava desmaiado na sua sala, sua respiração era muito fraca. Ela logo tentou reanimá-lo, mas os seus truques caseiros não estavam dando certo. Então, já muito cansada das inúmeras tentativas, correu para a cozinha e consultou a porta da sua geladeira. O número da emergência estava ali. Pegou o telefone e começou a discar. Ocupado. Ela começou a ficar desesperada, porém logo se acalmou, ao perceber que o estranho recobrara a consciência.
- Meus Deus! Que susto, garoto. Está se sentido melhor?
- Sim - sua voz era quase inaudível - Desculpe por entrar assim...
- Não fale nada, você deve ter um bom motivo para ter feito isso. Quantos anos você tem?
- Dezesseis, mas por favor, não me denuncie, eu já vou sair, só gostaria, se não for pedir muito, que a senhora me arrumasse alguma coisa para comer, pois já faz uns cinco dias que não me alimento.
- Ah, então foi isso. Você desmaiou de fome. Não tenho nada pronto agora, mas vou lhe arrumar uma xícara de café com leite e, enquanto isso, prepararei alguma coisa para você comer.
A humilde senhora se retirou para a cozinha e, alguns minutos depois, trouxe uma magnifica xícara de café com leite. O intruso bebeu com o mesmo prazer que os magnatas degustam uísque escocês. O rapaz, que tinha olhos castanhos, cabelos loiros e rebeldes, magro e muito mal vestido ficara encantado com a hospitalidade daquela senhora. Sentiu vergonha.
Alguns minutos depois, o portão batera violentamente, o marido, Seu Ezequiel, acabara de chegar.
- Cozinhando? - Perguntou para o sua esposa - Tão cedo, algum evento especial?
- É que temos visita, na sala, não viu ele lá?
- Não tem ninguém na sala.
A senhora, incompreendida, foi até lá. Estava vazia. O intruso havia partido.
Dona Mercedes contou tudo ao seu esposo, este lhe dera uma bronca por '' dar de comer a um estranho''. POR QUE NÃO CHAMOU A POLÍCIA? - esbravejava.
A senhora, reconhecendo que se excedera com a sua bondade, apenas ouviu, calada, sem manifestar qualquer contrariedade à reação do seu esposo.
Muito tempo depois, na verdade, vinte anos, Dona Mercedes, agora viúva, estava aguando as suas plantas, já não tinha tanta rigidez nas pernas, seus cabelos estavam alvíssimos e sua pele deixava claro que ela já tinha muita experiência de vida. O portão estava aberto, mas nunca mais ninguém entrara sorrateiramente por ele.
A  velha nunca esqueceu daquele episódio, ela ansiava em rever o intruso, o menino que desmaiara na sua sala.
- Por onde anda aquele menino?- perguntava para a imensidão do vácuo a sua frente - Por que não perguntei o nome dele? - Daí em diante, tudo aconteceu de repente.
O seu corpo ficou pesado de mais para as suas pernas, sua visão apagara completamente e sua voz não era compatível com aquele momento.
Acordara, dois dias depois, em um luxuoso hospital. Estava atordoada, não sabia o tempo que passara ali. Tentou se comunicar com a sua companheira de quarto, mas esta olhava para o teto como se estivesse vendo uma constelação.
- Meu Deus! Onde estou?
- Senhora, acalme-se - o médico viera ao seu encontro. Os quartos daquele magnífico hospital eram monitorados por câmeras de última geração, pois assim, mesmo em casa, os médicos poderiam acessar o sistema e acompanhar a recuperação dos seus pacientes.
- A senhora sofreu um AVC, acid...
Com a língua meio enrolada, disse - Eu sei o que é isso, sofri anos com o meu marido, mas como vim parar aqui?
- O carteiro foi lhe entregar uma carta e a encontrou caída no meio das plantas. Ele a trouxe aqui.
- Que Deus o abençoe! Aqui, esse hospital...câmeras...muito caro... eu não tenho condiç...
- Isso é com a tesouraria. Quando tiver alta, passe lá e resolva a sua situação.
A mulher ficou desesperada. Vou sair daqui direto para a cadeia. Pensou. Seja o que Deus quiser.
Onze dias depois, estava de alta, sua língua desenrolara completamente, mas o lado esquerdo do seu corpo perdera os movimentos. Teria que fazer algumas sessões de fisioterapia. Dirigiu-se para a tesouraria, não sabia o que ia acontecer dali pra frente.
A tesoureira estava irredutível.
- Eu falei com o médico que não tinha condições. Eu falei que eu precisava ser transferida para um hospital público, eu...
- Isso é o que todos falam. Falarei com o diretor, já volto.
Por incrível que pareça, o diretor já estava a par da situação da humilde senhora.
- A senhora está liberada, pode ir. Alguém lá no céu gosta muito de você - disse a secretária, com a mesma cara de espanto de sua ouvinte.
Entregou as notas para a velha senhora, que não estava entendendo nada do que estava acontecendo.
- Pegou os óculos, que agora fariam parte da sua rotina e começou a ler vagarosamente aquela nota detalhada.
Todos os custos estavam ali, tomografia, ressonância, raios-x, consultas, medicamentos, quarto...
No final da nota, onde se lê valor a pagar e valor recebido, estava ali a frase que resumia e esclarecia os fatos. Os gastos foram enormes, a quantia a pagar era exorbitante, mas um simples ato fez a velha senhora regozijar e implorar pela presença do diretor do hospital. Pedido prontamente atendido.
Ainda sem acreditar, releu '' o valor recebido'':  Gastos pagos com uma xícara de café com leite.


P.S
¹ Acidente Vascular Cerebral; Derrame.
Baseado em contos populares.

7 de fevereiro de 2010

Como eu gostaria de ser

Que atire a primeira pedra aquele que nunca almejou ser diferente em alguma coisa.
Eu, pra falar a verdade, nunca estou contente comigo mesmo, sabe. Confesso que,  às vezes, me imagino na pele de algum amigo meu.
Há certas qualidades que, de tão nítidas, parecem evidenciar o caráter de uma pessoa. Na maioria das vezes, dois minutos de prosa já é o bastante para traçar o perfil deste indivíduo.
Comigo sempre foi diferente. As pessoas vivem dizendo que sou uma incógnita, e o pior de tudo é que elas estão certas. Com isso, vivo num dilema eterno, afinal, se eu mesmo ainda não me descobri, como posso exigir opiniões sobre  mim?
Eu queria ser mais claro, objetivo e reto, mas não sou assim. Nas discussões, sempre saio com o rabo entre as pernas, derrotado, humilhado e sentindo pena de mim mesmo. Covardia.
Sou um fraco, sim, aquele que vos fala não queria estar digitando isso,  mas...
Você pode estar se perguntando: Você diz que não sabe como é, mas está aí, falando tudo. É, mas neste  exato momento, estou me perguntando se o que eu digitei acima está coerente com a realidade. É complicado, eu sei.
Eu queria ter todas as palavras exatas para retrucar, quando alguém vir me importunar. Queria ser mais irônico, sarcástico, dissimulado, hipócrita e calculista. Espanto? Com certeza você já agiu assim.
Eu queria aprender a pagar com a mesma moeda, ser vingativo, mas, ao invés disso, devido aos ensinamentos que tive, vivo rindo para quem quer ver a minha desgraça. Isso não seria um comportamento hipócrita, Paulo? Seria? Não sei.
Eu queria ser irredutível, fazer impor a minha vontade, não dá o braço a torcer, ter a última palavra, defender meus ideais sem dar ouvidos aos contras, mas sempre vivo à procura de apoio, à procura de alguém que me diga '' excelente'', ''ótima ideia'', '' vai em frente''... Minha dependência chega a ser ridícula. Fazer o quê? Eu sou assim.
Eu queria ser mais autoconfiante, ser mais egoísta, ser mais racional, mas sempre dou ouvido ao emocional.
Eu queria ser mais coerente, eu queria ter, em meu vocabulário, um vasto conhecimento do português, para que eu pudesse empregar, neste texto, palavras lindas e difíceis, que te obrigaria a usar o buscador do Google.
Eu queria estar postando este texto sem me preocupar com os erros ortográticos e com  a sua opinião acerca dele.
Eu queria ser teu amigo fiel, aquele  a quem você contaria todas as suas aventuras, mentiras, êxitos, mas mal consigo a sua atenção.
Eu queria ser mais risonho, ser mais altruísta, temer o que as pessoas temem, gostar do que todo mundo gosta, odiar o que todo mundo odeia, mas parece que sempre estou do lado oposto.
Eu queria ter a coragem de citar nomes de pessoas aqui. Dizer o quão bom é tê-las em minha vida, falar da sua importância, elogiar, mas...
Eu queria ter a coragem para xingar pessoas aqui, dizê-las como eu as detesto, como elas contaminam o ambiente em que se encontram. Gritar um sonoro FODA-SE!, mas  estou falando para mim mesmo que isso não seria um comportamento adequado.
Eu queria agradar a gregos e troianos, mas nem Jesus agradou a todos.
Eu queria ser eu mesmo, mas nem sei se sou o que acho que sou.